Lar, doce lar (ou Uma casa vazia)

5 0 0
                                    


O relógio bateu, são sete horas. O silêncio, como todas as noites, ainda toma conta da casa. A lua, especialmente hoje, não brilha pela fresta da janela que está sempre aberta – é lua nova. Silêncio, de fato. Não, não de fato. A bem da verdade, ouço, no fundo da alma, o tic-tac do relógio e o som do enfeite de porta batendo do lado de fora com o vento. Além dos meus pensamentos, é claro. Afinal, que mais levamos conosco, se não o tempo – cruel ameaça – a brisa fresca do mundo nos olhos e os pensamentos – tortura incessante de viver? Não levamos, nunca levamos. Quem nos leva são eles: o tempo, a brisa, o pensamento. Enfim, pouco importa. O que importa é que esta casa, em que moro só, está quieta, silenciosa, numa noite escura. Importa também que logo não estará. Como todas as sextas-feiras, daqui a cerca de meia hora começarão os tambores, se exalarão os aromas das ervas e se avivaram os brados sagrados. E a senzala invadirá esta casa, vinda de uma pequena tenda de umbanda, a não mais que dez metros daqui.

Dia desses, eu vou. Confesso que tenho medo, mas vou. É engraçada a familiaridade e a sacralidade que aqueles rituais já têm para mim. Eu, na minha criação católica – ou algo parecido, porque sou que nem a maioria dos brasileiros, que se diz católico porque fez catequese e crisma, mas nunca mais foi a uma igreja – na minha criação católica, eu tenho medo de espíritos. Talvez os filmes americanos também tenham ajudado. Mas não vem ao caso, o que importa é que, para mim, fantasma, espírito, assombração... dá tudo na mesma, e Deus me livre de ver um. Acontece que com esses espíritos que bradam ali, a dez metros da minha casa, estes parecem velhos amigos. Talvez, se dissesse isso para um deles, me respondessem que vivemos juntos na senzala, ou que lutamos juntos em inúmeras batalhas... é, soam bem como guerreiros antigos. Talvez até eu acreditasse, não fosse meu medo de acreditar em qualquer coisa que não seja eu. E só acredito em mim porque, se eu dissesse que não acredito que sou eu, iria internada para um manicômio... ou talvez, me mandassem para um exorcismo, e isso me assusta muito mais que um lençol branco voando na frente da minha cama.

Já são quase sete e meia. Será que vou? Pensando bem, não sei se tenho tanto medo de espírito. Acho que tenho medo de mim. Tenho medo do que vão dizer sobre mim. Tenho medo... é, tenho medo de ser eu. Não sei se dá pra ter medo de alguma coisa em que não se acredita. O fato é que eu tenho medo de espírito. E eu sei que são espíritos que gritam naquela casa. Mas, mesmo assim, de alguma forma, eles não me dão medo, eles são conhecidos. Talvez por tanto tempo já que os escuto e cheiro a distância. Mas eu tenho medo de mim. E tenho medo de não ser eu.

Será que é isso que eu ouço que chamam de possessão? Faria sentido... se bem que naquele documentário, falaram mal dessa palavra, disseram que o nome certo é incorporação. Mas que diferença faz? É um morto entrando no corpo de um vivo de qualquer jeito. Tanto faz, eu vou. Tenho medo de espírito, mas não deles. Tenho medo de mim, tenho medo de não ser eu. Mas não vou incorporar, vou ser eu ali, assistindo passivamente a um ritual diferente, que há anos eu escuto e cheiro. Quero saber o que acontece lá. Vou, e seja o que Deus quiser.

Celular, algum dinheiro, documento. Um cigarro, se as coisas andarem mal. Tranco a porta e vou andando. As flores que sempre noto na rua estão escondidas na escuridão da lua nova. Não há muito o que ver na rua, é pena, gosto de prestar atenção às belezas do mundo. Mas também não tem muito o que olhar, a movimentação na frente da tenda chama meus olhos. Muita gente de branco, são sorridentes, conversam, estão muito animados. Mesmo assim, parece que estão muito calmos, serenos. Apesar da alegria, há uma lentidão de tudo ali. Quando eu chego mais ou menos na metade do caminho, todos começam a entrar. Aperto o passo, não quero me atrasar.

Chego na porta, e as pessoas de branco já estão num círculo, muitas outras em volta. Um homem alto, vestido de azul e vermelho está na entrada, me dá as boas-vindas:

Contos de cantosNơi câu chuyện tồn tại. Hãy khám phá bây giờ