Vampiros do real

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O despertador soava seu contínuo e errante apito. Eram 6h15. Estiquei o braço como pude e calei-o. O cheiro do café do vizinho já invadia o ar; em alguns minutos, havia de chegar o cheiro das torradas. Aquilo me enjoava... Que nojo, como era possível pensar em comida a essa hora?!

Lavei o rosto e molhei os cabelos – livrei-me dos restos de sonhos que ainda poderiam atormentar aquele cérebro distraído; e o abri ao que desse e viesse nessa mais uma segunda-feira monótona e cotidiana... e que maldito cotidiano. Perguntava-me se a única vez que algo novo aconteceria para quebrá-lo seria o apocalipse. Por outro lado...

Por outro lado, talvez parar com o rosto molhado, em frente ao espelho de minha quitinete no centro de São Paulo, perguntar-me sobre esse cotidiano, já fosse a quebra dele mesmo. Seria o pensamento o apocalipse? Filosofia do apocalipse? Talvez. Creio que, no dia em que o ser humano livrar-se da lente e do espelho em seus olhos, das palavras em sua boca, no dia em que o ser humano for capaz de encontrar as coisas na sua realidade mais dura, no dia em que for capaz de simplesmente estar ali - nesse dia, ele deixará de viver. E o homem não sendo mais homem, há de ser o fim dos tempos... Ao menos o fim de um tempo: destruição, dominação, ditadura. O fim dessa maldita arrogância humana, arrogância de pensar – de que vale pensar, se esse próprio ato me priva da vida das coisas?!

Quem sabe seja essa a resposta para curar a existência.

Mas não. Não somos capazes de simplesmente existir – sem olhos, sem palavra e sem pensamento. De que me adiantava então gritar com os olhos, em frente do espelho, essas ideias e projetos para a humanidade?! Ideias inúteis; projetos inúteis.

E ali estava de novo... O desânimo dos entendidos saltando do negro olhar de meu reflexo. Por isso é que não queria me tornar aquela imagem: aquela imagem (perdoem-me os físicos, meu ponto é contra os filósofos) real, sem traço algum de pensamento, a não ser os que eu lhe lançava; ainda assim tão consciente de si, de sua plenitude real e de sua existência inútil. Inútil, sim. É isso que tenho tentado dizer aqui: não quero ter aqueles olhos porque, ainda que tão sabidos, eles trazem em si o sarcasmo da inutilidade.

Corria eu daqueles olhos, feito o diabo da cruz. Ainda que aquele rosto fosse feito à minha imagem e semelhança, não era eu, mas meu filho. Por ser meu filho, queria me espelhar (ou me espalhar?), assim como eu a ele. Bem sabia eu, isso significa que eu sou e sempre fora propensa àqueles olhos.

Quando os vi já arregalados, convulsionando frente ao saber (esse saber puro, sem pensar, sem interpretar, simplesmente coisa existindo), corri como sempre. Já me atrasava aos inflexíveis horários de um ser humano que pensa. Da cozinha, peguei uma xícara de café; da geladeira, minha cotidiana e alienada marmita já pronta; do guarda-roupas, a primeira blusa e a primeira saia que encontrei. Como de costume, me perdera na imagem de meu rosto humano e de meus seios maternais no espelho; me perdera a pensar nesses adjetivos que acabo de lhes dar, honrando minha existência de ser humano pensante e fantasiante, que aplica sempre ao real a lente das pupilas convulsionadas e assustadas com sua própria inutilidade.

Como de costume, me perdera em tudo isso, e agora corria atrasada para o tribunal – a labuta nossa de todo dia – numa saia que, pelo acaso da correria, era de uma vermelho quase negro, rubro como sangue alcoolizado. O sangue alcoolizado: essa bebida dos vampiros do real, feito eu. Vampiros que jamais tocaram e jamais tocarão o pescoço de sua vítima – e se contentam com essa maldita bebida infernal.

Contos de cantosWhere stories live. Discover now