Prólogo

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Quantos quilômetros uma pessoa pode correr em completo desespero? Aposto que o Tomás saberia a resposta. Talvez se eu apertasse o passo e forçasse o meu corpo ao limite, talvez, só talvez pudesse esquecer que acabei de te beijar, Abel. Bem, não foi um beijo ruim, mas foi um beijo roubado e sem seu consentimento. Por mais que eu tente, não consigo esquecer seu rosto de decepção por causa dele.

Minha boca ainda está meio dormente pela adrenalina e meu coração está batendo tão forte que faz o meu peito doer. As gotas de chuva atingem meu rosto como pedrinhas, de certa forma machuca, pelo menos ninguém consegue ver que eu estou chorando. É o que eu mereço, o pequeno o ódio do universo.

Por que não posso voltar para uma época mais simples? Onde você ainda existia, mãe. Quando ficávamos a noite toda contando estrelas, até eu cair no sono. Antes de a noite não ser cheia de pesadelos, e sim, de bons sonhos.

- Você sabia que as estrelas são gentis com meninos comportados? E que de vez em quando elas descem aqui na terra para guiar eles quando estão muito perdidos, coelhinho? - Minha mãe desenhava a constelação de Cassiopeia com o dedo indicador. Havia um sorriso fascinante em seu rosto que ressaltava suas covinhas.

- Mas, porque elas desceriam do céu, mãe? Lá é tão incrível. - Eu observava ela encantada com as estrelas. Ajeitei meu corpo na grama, me virando de frente para ela. - Aqui é tão chato.

Eu não pensava nisso, naquela época, mas passei a semana toda esperando por aquele dia. Minha mãe andava muito ocupada com sua turma de astrologia, era quase impossível para ela conseguir dividir atenção entre ser professora e ser mãe, porém ela sempre dedicava o máximo do seu pouco tempo para mim.

- Vem cá, coelhinho. - Minha mãe me puxa para um abraço, me apertando no processo. Minha bochecha fica contra seu peito. Ambos estamos em silêncio, eu consigo ouvir seu coração batendo.

- Sabe, talvez a mamãe não esteja aqui pa... Q-quer fazer um pedido para uma estrela? - Sua mão começa a brincar com o meu cabelo, é bom.

- Quero, mas o que eu devo pedir?

- Bem, algo que você queria muito. Foi assim que eu consegui você, coelhinho. - Ela dá um sorriso gentil, mas meio desconcertante.

- Eu queria que o papai trabalhasse menos.

- Ei, você não pode me contar, assim nunca vai se realizar.

- Certo, entendi. - Eu fechei meus olhos e me concentrei.

Muita coisa passou pela minha cabeça, talvez a estrela me ajudasse a segurar na mão da Mariana ou pudesse me fazer ter as melhores notas da sala, ou melhor, da escola, mas tudo que eu realmente queria era que esse momento nunca acabasse.

- A estrela mais brilhante vai estender a mão e te mostrar o caminho de casa, Erik.

Eu passei esses últimos meses me perguntando se o Abel era essa estrela. Perdi a conta de quantas vezes ele me olhou no fundo dos olhos e disse que ia ficar tudo bem. Talvez pessoas como eu que só destroem o que tocam, não mereçam o amor de pessoas como ele, que busca o melhor nas coisas.

A chuva ficou mais forte, junto com os meus pensamentos. Agora eu me sinto um liquidificador de emoções, que vai girar até queimar. Eu quero muito acreditar nas suas palavras, Abel. Talvez exista uma melhor versão de mim dentro dessa bagunça, apesar de todos os meus erros. Estou ficando encharcado, essa é uma péssima hora para começar a existir corpo. Se eu adoecer será que alguém vai cuidar de mim? De repente sinto uma enorme vontade de gritar.

- Eu não quero morrer sozinho.

O Garoto De MaréWhere stories live. Discover now