Anátema

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Há um homem tocando um violino, 

cujas cordas são os nervos do próprio braço...

O corvo - James O'Barr

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Gu YueYe era uma seita antiga, que se erguia imponente, flutuando em uma ilha em alto mar. Era possível ouvir o gorjear de aves marítimas à procura de peixes ou simplesmente sobrevoando, cortando o céu em busca de alguma terra de ninguém. Muitas poderiam parar na vegetação que cobria parte das rochas que era parte do relevo da ilha.

Claro que todos sabiam que na verdade, aquela vegetação encantada e carregada de poder de cura, e que fazia qualquer indivíduo moribundo sentir-se pleno apenas com a mudança de ar, crescia às costas da grande tartaruga lendária que fez um acordo com o fundador de Gu YueYe. Portanto, se o sangue chama sangue, a vida chama vida, e por isso aves e borboletas ficavam mais do que felizes em permanecer ali mais do que um período de repouso. A ilha não era apenas um grande refúgio de concentrada energia de cultivação, era a própria criatura mítica, tão viva quanto as pessoas que por ali caminhavam dia após dia.

Eles estavam vivos. Mas a que preço? Em quais circunstâncias? A dor era só um espinho na carne ou era uma tortura pelos erros cometidos e nunca consertados?

Jiang Xi não tinha tempo e nem queria fazer uma reflexão pouco eficaz sobre frivolidades humanas. Ele não tinha tempo para pensar. E não deveria estar pensando. Não naquele local. Naquela câmara em particular. Com aquela pessoa, de todas as outras.

O preço de uma maldição e uma dívida de sangue. Esses eram os laços que os uniam.

Os olhos não eram os mesmos. Nem poderiam. Olhos que não estavam mais no plano material e que possivelmente ainda o assombrariam por algum tempo. Talvez para sempre.

Mas naquele momento, ambos pares de olhos, um mais conhecido do que o outro, eram na verdade apenas parte de lembranças amargas como um tratamento para o fígado.

Lembranças mornas e quase ingênuas que se perderam no caminho.

Eles se moveriam conforme as instruções do pergaminho. Técnicas ancestrais passadas a tanto tempo e cultivadas com supremacia pelos sábios.

Jiang Xi nunca balançou. Nem uma única vez. Nem antes. E nem agora. Na verdade, esse era o segredo do sucesso da técnica. Aproveite os benefícios da medicina, mas seja prudente.

O amor é para os tolos. E o romance era apenas uma armadilha para os insensatos.

Se a distância que separa um herói de um tolo é da espessura de um fio de cabelo, a distância que separa amor e ódio é menor ainda. E a que separa cultivo duplo de sentimentos torturantes talvez seja uma fração de todo o restante.

Veneno e antídoto. Muitas vezes produto e subproduto um do outro. Do veneno se extrai o antídoto. O antídoto também pode ter efeitos colaterais, e tornar-se um veneno.

As beberagens mais eficientes eram amargas. O cultivo duplo parece suave... prazeroso a quem se liga neste tipo de circunstância. Mas também poderia ser tempestade e caos. Tão amargo... tão... tão terrivelmente amargo...

Amargos como a lembrança que Jiang Xi carregava. Olhos grandes, sem que precisasse de um delineado exagerado para esse efeito. Gentis e suaves. Um rosto que parecia constantemente corado. Uma mão que subiu, talvez para encontrar uma mecha caída e tirá-la de seu rosto.

Eu me viro e olho para a sala vazia: Por um momento eu quase acho que te vejo lá...

Eram apenas fragmentos de um poema antigo mas que pareciam tão apropriados para o momento...

Minha sombra em suas mãosOnde as histórias ganham vida. Descobre agora