Capítulo 9

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9 de julho de 2016

18 anos


Bati a porta do quarto com força. O choro se acumulava nos olhos e apertava minha garganta, um ódio puro e destilado que corroía os ossos. Eu tinha avisado que isso aconteceria, mas ela me ouviu? Claro que não. Quando foi que ela já tinha me escutado alguma vez na vida? Respirei ofegante, esticando e contraindo os dedos rápida e repetidamente para acalmar os pensamentos.

Só me restava uma coisa a fazer.

Puxei a mala de baixo da cama e comecei a guardar minhas coisas com a brutalidade de um furacão. Não precisei escolher nada, sabia que nunca mais pisaria naquela maldita casa, então só precisava pegar tudo o que coubesse na mala.

Lá embaixo, ele continuava gritando. Não dava para ouvir a voz dela.

Terminei de dobrar as roupas furiosamente rápido e fui para o banheiro, onde peguei uma sacola e saí jogando os itens de higiene e maquiagem nela. Depois, enfiei os produtos entre os espaços livres da mala. Olhei para a escrivaninha com estante acoplada. Já tinha guardado o laptop, mas não ia conseguir levar mais do que dois ou três livros. E, de tudo o que estava deixando para trás, isso era o que mais doía. Nenhuma garota deveria ser obrigada a se separar de seus livros.

De repente, eu me lembrei da Hannah entrando no quarto; todo dia ela vinha com aquele rostinho angelical me chamar para brincar de boneca, e foi como receber um soco no estômago. Abandonar meus livros não era nada se comparado à dor de deixá-la. No meio do quarto bagunçado e seminu de objetos pessoais, eu me curvei sobre a barriga, chorando. Não estava pronta para deixar minha loirinha favorita. Não queria perdê-la. Nunca quis abrir mão disso.

Mas eu não tinha tempo para duvidar. Não, eu precisava ser objetiva. Depois... Depois eu lamentaria de verdade.

Então respirei fundo para recuperar o controle. Sequei as lágrimas. Contei até cinco.

Mais calma, fui até a porta e encostei o ouvido contra a madeira, prestando atenção aos barulhos. Depois de confirmar que eles ainda estavam lá embaixo, caminhei pé ante pé até o quarto da porta cor-de-rosa.

Abri com cuidado. O cômodo estava vazio. Em cima dos lençóis, o coelhinho que viera buscar.

— Leli? — A voz infantil soou de baixo da cama, cautelosa.

Eu me ajoelhei. Hannah estava encolhida contra a parede.

— Tá tudo bem, Nah-Nah. Não precisa ter medo.

Ela me encarou, desconfiada. Umedeci os lábios e forcei um sorriso.

— Eles não estão bravos com você.

— Você tá cholando.

Senti o nariz arder e virei a cabeça. Não podia derramar essas lágrimas na frente dela. Reuni coragem antes de voltar a fitá-la.

— Vai ficar tudo bem, Nah-Nah — falei com a voz calma, porém firme. — Eu... Oh, você está com a Senhora Ovelha. Ela está bem?

Hannah me encarou por um segundo, obviamente confusa com a mudança de assunto. Então abaixou os olhos e afagou a pelúcia.

— Sim. Tá mimindo.

— Fique no seu quarto com a Senhora Ovelha até a mamãe ou o papai virem te pegar, tudo bem?

— Aonde você vai?

— Pra lugar nenhum — menti com um sorriso no rosto.

Ao me levantar, encarei Bunny em cima da cama. O coelhinho já tinha sido meu, mas eu o entregara de presente para Hannah no ano passado, quando ela havia completado quatro anos e me jurara que já estava grandinha o bastante para não destruí-lo.

Peguei a pelúcia de lembrança e voltei para o meu quarto. Coloquei o coelho na mala, abaixei a tampa e me sentei em cima dela para conseguir fechar o zíper.

E foi isso.

Finalmente tinha chegado o dia em que eu escaparia dessa gaiola. Pena que seria assim.

Desci as escadas com dificuldade, usando as duas mãos para erguer e abaixar a mala, degrau a degrau.

— O que está fazendo?! — mamãe gritou, de olhos arregalados.

— O que eu deveria ter feito há muito tempo.

— Não, não, por favor! Filha, vamos conversar.

A voz quebrada dela não me abalou. Nem um pouco. Ele veio da cozinha, vermelho.

— Depois de tudo o que nós fizemos por você?! De anos e anos ensinando o caminho certo? Você é uma vadia ingrata! É melhor sumir mesmo das nossas vidas, vai embora! E não precisa voltar nunca mais, ouviu? Você não é minha filha, é a minha maior decepção!

Eu já estava no pequeno hall de entrada da casa e tinha acabado de abrir a porta, mas aquilo me fez virar para eles uma última vez com a expressão dura e o queixo levemente erguido. Mamãe estava entre mim e ele, usando seu corpo miúdo como uma espécie de barreira.

— Finalmente a gente concorda em alguma coisa, não é, George? — Ele odiava que eu o chamasse pelo nome, considerava uma falta de respeito, mas fazia muito tempo que ele perdera seu direito de exigir respeito. — Eu não sou sua filha e você nunca foi um pai pra mim. Um pai de verdade não teria errado tanto comigo.

— Meu único erro foi não ter usado a vara da disciplina. Eu deveria ter te batido quando era mais nova. Deveria ter sido muito mais firme!

Seu único erro?! — Uma risada de indignação e meus olhos se encheram d'água. — Você acha mesmo que me bater teria resolvido as coisas?

— Se fosse para evitar que você estivesse desse jeito, indo pro inferno, sim!

Engoli o choro. Olhei para mamãe e depois para ele de novo.

— Eu não estou indo pro inferno, George. Eu vivi nele a minha vida toda.

Dei as costas e saí pisando duro rua abaixo, arrastando a pesada mala atrás de mim.

Não olhei para trás.

Fiquei na parada de ônibus sentada sobre a bagagem, de braços cruzados, usando toda a minha força para não chorar. Enquanto esperava, eu tinha a sensação de estar sendo observada por todo mundo. A mulher passeando com o cachorro. O adolescente de skate que também esperava pelo ônibus. O senhor que caminhava devagar pela calçada. Parecia que todos eles sabiam o que tinha acontecido.

Eu me encolhi e desviei os olhos para ninguém em particular.

Talvez fosse melhor ir embora dali quando o pesadelo terminasse. Começar uma vida nova em Londres ou Manchester. Ou, a julgar pela minha situação de completa falência, talvez alguma cidadezinha do interior fosse uma ideia melhor.

Bom, a cidade não importavamuito. Naquele momento, tudo o que eu sabia com certeza era que não podia maiscontinuar em Cambridge.

Se Pudesse Ver as EstrelasWhere stories live. Discover now