"Chegamos no hospital, tá? Estamos esperando atendimento."
A mensagem de Cinthia chega pouco mais de uma hora depois. Dizer que estou com medo é pouco — estou com o cu na mão, me tremendo inteira, enquanto espero por notícias.
"Obrigada, viu? Não sei o que eu faria sem você", digito de volta.
Cinthia demora para responder. A mensagem é visualizada, mas não tenho retorno nenhum pelo que me parecem horas inteiras, embora apenas alguns minutos tenham se passado. Quando chega, sua resposta é concisa.
"Você faria o mesmo por mim. Te dou notícias assim que der."
Depois disso, mais nada.
A tarde se transforma em noite, e perco totalmente a capacidade ou a vontade de fazer alguma coisa. Vou da sala para o quarto agarrada ao celular e, quando Bruno me encontra, a casa está quase totalmente às escuras, exceto pela tela ainda acesa do meu celular. Ele senta ao meu lado na cama e passa um braço pelos meus ombros.
— Alguma coisa? — pergunta.
Olho o celular por reflexo, embora não tenha ouvido nenhuma notificação e não tenha recebido absolutamente nada de Cinthia há mais de três horas.
— Ainda não. — respondo, em voz baixa.
— Já, já elas dão notícias. — ele me garante, e só consigo assentir — Vou fazer a janta, tá?
— Uhum.
Ele sai e o ouço descer as escadas e mexer nas panelas, mas continuo imóvel, segurando o celular. Meu receio de atrapalhar acaba perdendo para o desespero, e escrevo novamente para a minha amiga.
"E aí? Alguma novidade?"
Mas dessa vez ela sequer recebe, o selinho de enviado sendo a única fresta de contato com o que está acontecendo a mais de 500km dali.
— Amor? A janta tá pronta. — ouço Bruno chamar de lá de baixo, e percebo que preciso me levantar.
Vou até a cozinha de forma mecânica e me sento para jantar. Bruno fez arroz e descongelou um pote de feijão, nada muito complexo. Faço meu prato só por fazer, mas mais remexo na comida que qualquer outra coisa.
Bruno larga os próprios talheres e segura minha mão sobre a mesa.
— Eu tô aqui, tá? — diz, com um meio sorriso — Sei que não quer dizer muita coisa, mas você pode se apoiar em mim se precisar.
— Quer dizer muita coisa, sim. — respondo — Ia ser muito pior se eu estivesse sozinha.
Ela baixa os olhos e aperta meus dedos.
— Foi muito ruim? Nunca te perguntei. — ele diz — Quando eu estava fora.
Rio por dentro do fora, como se tivesse sido uma viagem de lazer, e não dias em um leito de hospital. Não gosto nem de pensar naqueles dias. Não consigo nem pensar que posso voltar a vive-los.
— Foi bem ruim. — admito, por fim — Ficar sozinha nessas horas é a pior coisa que pode acontecer.
Faço silêncio, e tento dar uma garfada, mas a comida não desce. Quando a garganta trava, sinto meus olhos se encherem d'água, e quando dou por mim, estou curvada sobre o colo de Bruno.
— Não acredito que isso tá acontecendo de novo! Não acredito que vou ter que passar por isso de novo!
— Calma, amor. — Bruno murmura, fazendo carinho nas minhas costas — Eu fiquei bem. Ela vai ficar bem também.
— E se não ficar? E se eu perder minha mãe e nem estiver lá pra dar um enterro digno pra ela? Eu não posso perder minha mãe, Bruno, eu não posso!
— Vem aqui.
Bruno se ajoelha no chão e me puxa da cadeira até que eu caia com ele. Ali, no chão da cozinha, ele me aninha enquanto eu choro, beijando minha cabeça e me deixando colocar todo meu medo para fora sem dizer uma só palavra.
~*~
Tomo um susto quando o toque do telefone me acorda.
Não me lembro de ter dormido. Bruno me deixou chorar até que eu não conseguisse mais respirar, então me deu água e tentou me obrigar a comer antes de assumir vigília comigo do lado do telefone na cama, mas agora ele não está ali. Devo ter pegado no sono. Procuro o telefone e atendo.
— Alô?
— Oi, amiga, sou eu.
A voz de Cinthia do outro lado da linha é simultaneamente um alívio e um terror completo. Meu coração dispara enquanto balbucio as palavras:
— C-como ela tá, você tá aí ainda?
Ouço Cinthia soltar um longo suspiro do outro lado da linha e meu corpo trava.
— Eu vim pra casa, não me deixaram ficar. — ela responde. Demoro um segundo a mais para entender o que isso significa.
— Você foi pra casa. — repito — Mas ela ficou?
— Ficou em observação.
Sinto meu corpo tremer. É como se eu estivesse de volta no tempo, para as ligações de Santa esperando notícias de Bruno, só que muito pior. Estou do outro lado do estado. Quando ela sair, não tem ninguém pra cuidar dela.
Se ela sair.
— Ela tava com a oxigenação bastante baixa, mas o resto parecia ok. Não tava com muita febre. — Cinthia continua — O hospital tá bem cheio então eu não sei se ela vai ficar lá ou se vão transferir pra outro lugar. Passei o meu celular e o seu como contato, eles devem mandar boletins diários.
— Tá. — é só o que consigo responder, a boca subitamente seca — Ela ainda tá com o celular?
— Sim, fiz ela levar uma malinha, graças a Deus. Só que o sinal lá dentro é terrível, pode ser que demore pra ela ver alguma mensagem sua.
— Tudo bem.
— Desculpa, amiga, eu queria ficar com ela, mas não deixaram.
— Eu sei. Tá tudo bem. — sinto a voz tremer e as lágrimas avançarem de novo — Obrigada, Ci. Você salvou a vida dela.
— Não tem o que agradecer, ela é quase uma mãe pra mim também. — Cinthia fica muda um segundo, e então — O que você vai fazer?
Olho em volta. O quarto que aprendi a chamar de meu, e o espaço que aprendi a chamar de casa de repente parecem totalmente desconhecidos. Tenho a sensação de flutuar, intocável, inalcançável, como se estivesse vendo tudo, inclusive a mim mesma, de fora do corpo. Respiro fundo.
— Vou dar um jeito.
Me despeço de Cinthia e levanto para acender a luz do quarto. Minha mala está em cima do armário, e preciso subir na cama para alcança-la, apenas para derruba-la no chão com um estrondo. Abro-a sobre a cama e vou em direção às gavetas onde ajeitei minhas coisas, começando a recolher os meus pertences. Calcinhas, meias, camisetas. Como foi que acumulei tanta coisa se cheguei aqui com apenas uma mala de mão?
Então a porta se abre, e Bruno me encara com uma expressão estupefata.
— O que você tá fazendo? — pergunta.
— Arrumando minha mala. — respondo, a voz seca e direta como se eu não estivesse encolhida em seu colo chorando há algumas horas.
— Isso eu tô vendo. — ele diz, apontando na minha direção — Pra quê?
Enfiado em uma gaveta, acho o vestido que usei no nosso casamento. Seguro-o entre as mãos, e, por um instante, me pergunto o que teria acontecido se eu nunca tivesse vindo, ou se tivéssemos marcado tudo com uma semana de atraso e a pandemia tivesse me impedido de sair de Birigui. Se nunca tivéssemos vivido nada do que vivemos, será que seria mais fácil? Será que minha mãe ainda teria ficado doente se eu nunca tivesse ficado longe dela?
Por fim, dobro o vestido e o coloco na mala com cuidado antes de encarar Bruno novamente.
— Vou para casa.
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De mala e cuia
RomancePara Sabrina, vale tudo para garantir seu visto de entrada em solo canadense: economizar, fazer trabalhos pouco ortodoxos, subir ladeiras para guardar o dinheiro da passagem de ônibus e até mesmo se casar com um completo desconhecido. É por isso que...