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Cinthia passa mais uma horinha comigo e depois sai para cuidar dos próprios afazeres. Mais tarde, ela me manda mensagem me lembrando de comer e dizendo que agendou um PCR para nós duas na manhã seguinte.

E então, estou sozinha.

Divido meu tempo entre deitar na sala ou na minha própria cama. Parte de mim quer abrir o quarto da minha mãe e se aninhar na cama dela, mas não tenho coragem — algo em mim me diz que, se eu abrir aquela porta e agir como se ela não estivesse mais aqui, então ela terá ido para sempre, então deixo tudo como está.

Quase não como, apática demais para ter apetite, e só lembro de tomar banho quando já anoiteceu. Olho minhas mensagens o dia todo, mas, salvo uma ou outra mensagem de Cinthia ao longo do dia perguntando como estou, não tem nada. Bruno não falou mais nada desde a hora em que nos falamos pelo telefone, e, por mais que eu precise desesperadamente dele agora, não tomo a iniciativa de conversar. Estou cansada demais para processar isso agora.

Então, quando já estou na cama, pronta para dormir, o celular vibra com uma mensagem. Tomo um susto, pensando que podem ser notícias do hospital quando vejo a notificação de um número desconhecido, mas ao abrir, me deparo com:

"Oi, Brina! É a Andreza! Bruno me falou da sua mãe, tem notícias?"

Fico levemente enjoada, me sentindo desrespeitada ao pensar naquela situação como tópico de fofoca de família, mas sei que não foi por maldade — conheço Bruno o suficiente para saber que ele não é uma pessoa fofoqueira. Respiro fundo e respondo:

"Oi, Andreza. Nada ainda, só me ligaram de manhã. Não sei se isso é bom, sinceramente."

Ela visualiza na hora e o digitando me atormenta por um tempo longo demais até a mensagem nova chegar.

"É normal, boletim de UTI normalmente é 1x por dia. O que falaram do quadro dela?"

Resumo as informações que me foram passadas pela manhã, e Andreza visualiza as mensagens sem responder enquanto falo. Depois que termino, ela diz:

"Ela parece estável. É só aguardar. Sei que entubar parece ruim, mas são as melhores chances dela agora. Ela vai ficar bem!"

Tento me agarrar na palavra de uma profissional de saúde, mas acho que, em um momento como esses, nem mesmo Andreza, com quem não tenho intimidade alguma, cometeria um sincericídio que fosse me deixar mais apavorada do que já estou.

"Espero que sim," respondo, somente.

"Você vai mantendo a gente informada? Torcendo daqui. Bruno falou que você já voltou pra sua cidade, né?"

Me pergunto o que mais Bruno falou sobre mim no último dia, mas guardo esse questionamento para mim e só confirmo. Ainda estou com o celular na mão quando pego no sono.

Acordo sobressaltada com o toque do telefone na manhã seguinte, toda dura de tensão e dolorida de ter dormido torta. Tateio desesperadamente atrás do celular, mas preciso levantar da cama e acender as luzes para encontra-lo, exatamente debaixo de onde eu estava deitada. Atendo a ligação com o coração na boca.

— Alô?

— Bom dia, por gentileza ,a senhora Sabrina se encontra? — o rapaz diz do outro lado da linha, como se estivesse ligando num número fixo e não em um celular pessoal.

— É ela. — respondo, com a boca seca.

— Bom dia, sra. Sabrina, aqui é o Anderson da Santa Casa de Misericórdia de Birigui com o boletim da paciente sra. Lisandra.

— Sim, sim. — digo, rapidamente — Como ela está?

— O quadro da sra. Lisandra é considerado estável. — ele diz, em um tom que sugere que está lendo o prontuário para mim enquanto fala — Ela respondeu bem à oxigenação. A pressão está alterada, mas controlada com medicação. Função hepática e função renal dentro da normalidade.

— Tem alguma previsão de quando ela vai sair da UTI?

O silêncio do outro lado da linha é breve, mas poderia ter durado mil anos. Imagino o tal Anderson em sua mesa, fazendo ligações como essa para centenas de parentes de pessoas internadas na UTI e sem qualquer preparo para responder uma questão que não esteja no prontuário. Duvido que alguém esteja preparado, mesmo seis meses após o início dessa pandemia. Acho que não é algo para o qual alguém se prepara.

Então, ouço-o suspirar na linha e sinto que terei uma resposta franca, ainda que não necessariamente a que eu gostaria de ouvir.

— Infelizmente não temos como saber, sra. Sabrina. — ele diz, calmamente — Cada paciente responde de um jeito. Ela pode precisar do respirador por mais alguns dias ou várias semanas. Vamos monitorar e acompanhar dia por dia, ok?

Não está nada ok, quero responder, mas não adianta. É o que é. Não tenho controle sobre nada.

— Ok. Obrigada, Anderson.

— Até amanhã, sra. Sabrina.

~*~

Cinthia chega algumas horas mais tarde e me leva para o tal laboratório particular para nos testarmos para COVID. Ela me tranquiliza, dizendo que é um teste chato, mas rápido, e que não precisaremos ficar esperando por muito tempo. Quando chegamos ao laboratório, a fila de espera quilométrica e o volume de pessoas de máscara, separados pelo espaço de uma cadeira como se um metro de distância fosse importar naquele ambiente minúsculo, me deixa levemente desesperada, e me pego reajustando a PFF2 no rosto constantemente até ter meu nome chamado na recepção.

Infelizmente, nada me tranquilizou o suficiente para ter meu nariz cutucado com um cotonete até que eu sentisse vontade de espirrar, tossir e rir, tudo ao mesmo tempo. Meus olhos estão lacrimejando quando o teste termina, e reencontro Cinthia na recepção para ir embora, com a garantia de que ela me mandará o resultado por mensagem em algumas horas — as vantagens de ter um marido bem conectado.

Então ela me deixa em casa e estou sozinha novamente. Vou procurar o que comer, e entro em pânico percebendo que preciso ir ao mercado, enfrentar o mundo, estar em público enquanto minha mãe definha numa cama de hospital; mas não tenho opção, então pego minhas sacolas retornáveis, recoloco a máscara e saio.

A caminhada até o mercado é relativamente curta, mas cansativa. Birigui já está ostentando um calor de mais de 35 graus e eu chego na pequena mercearia perto de casa pingando e arfando, mas sem baixar a máscara por um segundo sequer. Sinto uma onda de nostalgia me invadir quando passo pela entrada, com os caixas à minha esquerda, e vejo que tudo está basicamente no mesmo lugar — a única diferença é que agora tem uma gôndola cheia de álcool em gel, máscaras e luvas cirúrgicas logo na entrada.

Atravesso os corredores pensando no que comprar e fazendo contas mentalmente com meu parco dinheiro. Não trabalho há vários dias, nem sei se vou ter condições de trabalhar de novo tão cedo. Em breve, vou precisar atacar a poupança que fiz para o Canadá; pensar nisso me dá um gosto estranho na boca, pensando em todas as coisas que gostaria de ter feito e não pude fazer, que talvez sequer faça, pelo andar da carruagem. Então ignoro o sentimentalismo e encho o carrinho. Comer hoje para sonhar amanhã.

— Sabrina?

Tomo um susto quando ouço meu nome e me viro rapidamente. Parado bem atrás de mim está Rodolfo, com uma camisa listrada de manga curta cheia de manchas de suor, uma bermuda jeans esfolada e a máscara...

A máscara no queixo. Como se a namorada dele não estivesse nesse momento lutando pela própria vida na UTI. Será que foi assim que ela pegou?, penso, uma ponta de raiva começando a se espalhar pelo meu coração.

— Você voltou mesmo! A dona Rita me falou! — diz, se referindo à vizinha intrometida que mora em frente à nossa casa — Tem notícias da sua mãe? Ela não me responde no zap.

Sinto um bolo se formando na garganta que preciso engolir antes de conseguir falar.

— Minha mãe tá internada, Rodolfo. Ela tá entubada. Ela não vai te responder.

Falo com calma, cada sílaba saindo com secura, mas dentro do meu peito, as palavras explodem. Ela não vai responder o zap. Ela não vai atender ligações. Ela não vai voltar para casa. Ela não vai sair de lá.

— Eu não sabia. Achei que ela só estava brava comigo. 

De mala e cuiaOnde histórias criam vida. Descubra agora