Inesperado - parte 1

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Ao chegar em casa, Hevan preferiu seguir o exemplo da garota e ser sincero com Mikelah. Após contar tudo o que aconteceu, foi surpreendido pela aprovação do gesto.

— Muito bem, Hevan. Às vezes temos que olhar com outros olhos para aqueles que julgamos estar fazendo o mal.

Jantaram juntos e depois o elfo foi se deitar. Lembrou com alegria do dia que passou: tinha treinado com seu pai e mentor – seu passatempo favorito. Também tinha encontrado sua única amiga e passado um agradável tempo com ela. Por fim, ainda estava com aquela sensação de dever cumprido em relação ao como agira com a ladra. Sentido essa paz interior, adormeceu.

Mas o sono que parecia tão bom foi interrompido de madrugada por sons altos e nada agradáveis. Pareciam explosões, demolições e pessoas gritando.

Hevan primeiramente achou que estava sonhando, depois rezou para que realmente fosse um sonho. Enfim, percebeu que não era sonho algum. Desceu as escadas às pressas, abriu a porta da casa e deparou-se com uma cena assustadora: muitas casas em chamas, sendo derrubadas pela cauda de um gigante dragão alado de duas cabeças. Uma era dourada e muito clara e baforava bolas de fogo contra construções e cidadãos, que corriam para se salvar; a outra, negra e brilhante como uma pedra de ônix, cuspia jatos de ácido contra os guardas que tentavam em vão deter a fera. O corpo era grande e esguio, simetricamente dividido entre as duas cores – dourado à direita, negro à esquerda.

No meio de todo o desastre estava Mikelah, protegendo-se com um escudo que o cobria quase até os joelhos e empunhando sua espada da época que era capitão, a qual chamava carinhosamente de Mordaz. Ao ver seu mestre e pai adotivo em frente a uma fera de tamanha magnitude, Hevan sentiu um frio na espinha que desceu desde o início da nuca até o fim do quadril.

No impulso, correu para dentro da academia, pegou a primeira espada e o primeiro escudo que viu e foi rumo à batalha, na tentativa de fornecer alguma ajuda. No meio do percurso, cego pelo medo e pela raiva, mal notou a cauda do monstro vindo em sua direção. Num golpe certeiro, a fera o jogou contra uma parede, deixando-o inconsciente.

Alguns minutos depois, Hevan começou a recobrar a consciência, ouvindo ao fundo uma voz conhecida.

— Hevan! Hevan! Acorde!

Era Sarah, apavorada.

Com dificuldades, ele conseguiu visualizar Sarah, com cortes no rosto e nos braços. Sua expressão era um misto de alívio e pesar.

— Graças aos Deuses está bem! — continuou a clériga, com os olhos marejados e a voz embargada.

— O que aconteceu? — perguntou o elfo, com a mão na cabeça, tentando retomar o foco.

Sarah ainda tentava recobrar as forças para explicar o ocorrido. O elfo olhou ao seu redor e observou o cenário caótico que se apresentava em meio à fumaça densa: parte da cidade completamente em chamas e muitos guardas e moradores mortos ao chão. Os clérigos guerreiros da ordem que Sarah fazia parte estavam curando os feridos.

— Foi tudo muito rápido. Acordamos à noite com o som de uma explosão. Quando saímos dos nossos quartos, vimos esse gigante dragão descendo num voo rasante, batendo nas construções como se propositadamente quisesse destruí-las. Os guardas da cidade se prepararam para lutar, mas não foram páreo para a fera. O monstro era muito poderoso! Varreu Marts inteira com fogo e destruição e foi embora, tão rápido quanto veio — explicou Sarah.

Hevan então lembrou da última visão que teve antes de ser atingido: Mikelah lutando contra a besta.

— Mikelah! Onde está Mikelah?

— Eu estava ajudando a curar os feridos, mas não o vi. Sinto muito!

Hevan levantou, ainda desnorteado, e caminhou cambaleante por entre os escombros, procurando por seu mestre. Gritou o nome de Mikelah por várias vezes, mas não ouviu resposta.

Após andar mais alguns metros, reconheceu um cabo da espada soterrado por uma pilha de pedras. Tentou puxá-la, mas os destroços eram muito pesados. Então resolveu retirar as pedras de cima, uma a uma, o mais rápido possível, e encontrou também o escudo que Mikelah usava. Ele apoiou as pernas em duas rochas que estavam mais firmes, se arcou e usou toda a sua força para remover o escudo. A peça pesada de metal se moveu vagarosamente, revelando o que Hevan esperava, mas não queria encontrar. Abaixo dela estava Mikelah, muito ensanguentado, com um braço evidentemente quebrado e respirando com muita dificuldade. O coração de Hevan parou por um momento ao ver a cena.

— Por favor, alguém me ajude! Um clérigo, pelo amor dos Deuses! — gritou ele, após retomar o fôlego.

Mikelah tentava dizer algo, quase inaudível. Hevan se aproximou e conseguiu entender.

— Hevan... Meu filho...

Uma emoção muito grande tomou conta do elfo, pois pela primeira vez Mikelah o chamara de filho. Contudo, ele sentiu em seus ossos que esse era o sinal de que o futuro do homem estava comprometido.

– Não tenho muito... tempo... Pegue Mordaz e vá para Ulrich... Torne-se quem você foi destinado a ser...

Hevan, com lágrimas nos olhos, clamou por ajuda.

– Um clérigo! Um curandeiro! Alguém, por favor!

— Meu tempo... acabou. Mas saiba, Hevan, que te criar foi o melhor presente que eu poderia ter nessa vida!

Após sua fala, Mikelah encostou a cabeça para o lado e fechou os olhos.

— Não! Não se vá! Pai...

Naquele instante, um clérigo pulou sobre os escombros, impôs suas mãos sobre o peito de Mikelah e começou a conjurar uma oração de cura. Intensificou o poder das palavras, como se procurasse uma resposta do corpo do pai do elfo, mas nada aconteceu.

— Sinto muito, meu jovem. A alma desse homem já deixou o corpo — disse ele, com uma expressão pesada no rosto, sem conseguir olhar para Hevan.

Hevan abaixou a cabeça e chorou em silêncio. Sarah o viu ao longe, ainda ajoelhado perante o corpo de seu pai, se aproximou e apenas o abraçou por trás, sem dizer nada, encostando a cabeça em seu ombro. Mikelah, seu pai de criação e única família que ainda possuía, havia partido para o Além-Vida, deixando o jovem elfo sem chão e com futuro incerto.

...

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Arlock - um conto de Ellora [Degustação]Onde as histórias ganham vida. Descobre agora