A Mata dos Ventos - parte 1

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Era início da tarde. Os três viajantes andavam sobre um campo plano entre a cidade de Marts e a Mata dos Ventos. Algumas fazendas pequenas podiam ser vistas à esquerda e à direita. Hevan estava à frente, já que sua visão élfica permitia que ele enxergasse mais longe, enquanto Sarah e Alana iam atrás. A ladra, curiosa para conhecer seus novos companheiros, decidiu puxar assunto.

— Como tornou-se uma clériga, Sarah?

Sarah, sempre solícita, resolveu contar à jovem sua história. Sua voz amena e gentil fazia as palavras saírem de sua boca como se fossem parte de uma cantiga de ninar.

— Desde quando minha memória consegue lembrar, estive entre os clérigos. O vigário Yaguer me explicou que, quando criança, caí de uma das carruagens que levavam suprimentos aos mosteiros e bati a cabeça em uma pedra. Talvez por isso tenha perdido memórias de infância. Ele me acudiu, mas o comboio já havia se distanciado, e não conseguiu avisá-los. 

– Vigário? – questionou Alana, com uma doce feição de incompreensão.

– Vigários são os sacerdotes responsáveis pela preservação e segurança das igrejas. Cada igreja, capela ou catedral possui um vigário.

– Entendi! – exclamou a jovem, demonstrando seu contentamento em aprender uma palavra diferente. – Mas o que aconteceu depois?

– Bem, o vigário Yaguer cuidou de mim, aguardando que minha família voltasse para me buscar, mas passaram-se meses e ninguém apareceu. Já sem esperanças de encontra-los novamente, pedi para estudar junto aos membros do clero. Quando atingi a idade necessária, optei por seguir os passos dos clérigos guerreiros, pois achei que faria mais diferença lutando pela nossa causa do que simplesmente rezando nos mosteiros.

— Então não acredita que os clérigos monges tem poder em suas orações? — indagou Alana.

— Pelo contrário, criança! — respondeu Sarah. — As orações dos monges chegam aos Deuses, que intercedem por nós! O balanço entre as energias da Luz e da Escuridão apenas se mantém graças ao esforço e a fé desses santos homens! Não tenho uma mente sábia o suficiente para chegar ao nível de um monge, por isso preferi tornar-me uma guerreira.

A forma convicta com que Sarah falava encantava Alana, que começou a ver nela um exemplo a ser seguido.

— E você, menina? O que fez uma jovem tão bela cair no antro dos necessitados? — questionou Sarah, devolvendo a pergunta de Alana na mesma moeda.

— Bem, não há muito o que dizer. Fui abandonada. Desde criança vago pelas ruas das cidades, pegando carona com nômades e ciganos. Já estive em Ulrich, em Kefflen, em Odrin e em outras vilas menores antes de chegar a Marts.

— Mas sempre esteve sozinha? — sondou a clériga, sentindo pena da jovem ladra.

– Já me uni com alguns clãs de ladrões. Eles me ensinaram vários truques que me ajudaram a sobreviver até hoje. Embora muitos os julguem como canalhas inescrupulosos, egoístas e malvados, muitos ladrões são leais uns aos outros. Vários clãs possuem leis que devem honrar, como não roubar de aldeões pobres e nunca trair alguém que já lhe oferecera ajuda.

— Interessante descobrir isso — comentou Sarah que, embora tivesse aprendido desde cedo a nunca julgar os outros (e demonstrara isso no episódio entre Hevan e a ladra), tinha um certo preconceito com ladrões, por acreditar que a maioria — se não todos — possuíam uma alma corrompida. — E por que não continuou com eles?

– Apesar de todos me tratarem bem, eu sentia como se não fizesse parte daquele lugar. Quando tal sentimento falava mais alto, eu partia à noite, enquanto estavam dormindo ou saíam para cometer pequenos furtos. A verdade é que eu não quero mais viver nas sombras, às custas dos outros!

– Sinto em ti uma aura do bem, Alana. Acredito em ti e torço para que essa missão lhe ajude a conquistar essa meta!

Alana sorriu timidamente ao ouvir as palavras da clériga e logo procurou mudar de assunto, tentando disfarçar o rubor que tomou conta de seu rosto.

— E o elfo? Hevan, certo? O que aconteceu com ele?

Sarah respirou fundo e olhou para o elfo para garantir que ele não estava prestando atenção.

— Isso, Hevan. Bem...

Então, começou a contar toda a história de Hevan. Comentou sobre como ele fora encontrado, falou de sua relação com Mikelah e Thelma e detalhou a difícil infância do rapaz. Alana exibia em seu semblante os sentimentos que tomavam seu coração a cada passagem, externando pena, raiva e compaixão. De repente, a conversa foi interrompida pelo próprio Hevan.

– Acredito que quando o assunto sou eu, cabe a mim falar. E se o assunto sou eu, deve-se perguntar a mim, não a outra pessoa – disse, num tom irritado.

A audição apurada natural dos elfos o fez ouvir toda a conversa. Alana teve seu rosto tomado mais uma vez pelo rubor, abaixou o olhar e, envergonhada, decidiu parar com as perguntas. Sarah franziu o cenho, estranhando o comportamento de Hevan, afinal geralmente seu amigo mostrava-se amistoso. Contudo, após refletir, compreendeu o comportamento impetuoso. Era um assunto delicado que indiretamente remetia à recente perda de Mikelah.

Continuaram caminhando em silêncio por quase duas horas até chegarem à entrada da Mata dos Ventos. Alana tentou se aproximar mais de Hevan, andar ao seu lado, esperando que ele puxasse assunto para quebrar o clima ruim que ficara, o que não ocorreu.

Hevan tomou mais uma vez a dianteira e entrou na floresta. As árvores eram altas, frondosas e fechavam a parte de cima da trilha como um arco, resultando em um teto verde com pontos de luz entrando na mata a todo momento, devido ao movimento dos galhos por conta do vento. Ficavam muito próximas umas das outras, com exceção da região da trilha, de terra batida e muito bem demarcada. Ouvia-se barulhos de pássaros, rãs e pequenos animais por entre a mata. Por lá caminharam cerca de meia hora, até que Hevan subitamente parou.

– O que houve? – perguntou Sarah, baixando as sobrancelhas.

Hevan pediu silêncio, com o dedo indicador em frente à boca.

– Estão ouvindo?

Sarah e Alana ficaram se entreolhando, esperando por algum som. De repente, uma forte rajada de vento os atingiu pela direita, derrubando os três no chão. O vento assoviou por entre o vão das árvores, folhas cortaram o céu e ouviu-se o bater de asas de pássaros indo embora dali. Eles colocaram as mãos sobre a cabeça, tentando se proteger dos pedaços de galhos e cascalhos que dançavam freneticamente pelo ar, além da grande quantidade de poeira que teimava em atingir seus olhos e bocas.

A ventania não durou mais que vinte segundos, mas quando finalmente se colocaram de pé, foram surpreendidos por uma mudança visual que os deixou perplexos: o caminho à frente, antes retilíneo, agora se dividia em três pontos. Então lembraram do que o duque Martinus havia contado sobre a mágica da floresta e ficaram desconsolados.

– Mas que azar o nosso! Justo quando estávamos passando pela mata!  – desabafou Alana, balançando a cabeça.

– Acho que devemos voltar e solicitar ao duque Martinus a vinda de soldados para desbravarem a floresta novamente. Assim saberemos qual o caminho correto – aconselhou Sarah.

– Não! – exclamou prontamente Hevan, com a testa enrugada e o olhar sombrio. – Devemos continuar! O duque afirmou que os soldados devem ficar na cidade para garantir a segurança dos moradores. Precisamos avisar logo o reino sobre o desastre para que Marts possa receber a ajuda que precisa!

Mesmo receosas, as duas se convenceram a permanecer com Hevan. O elfo parecia sincero ao querer ir rápido para solicitar ajuda à cidade, mas na verdade ele apenas desejava ficar o mais distante dela o mais depressa que pudesse.

...

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Arlock - um conto de Ellora [Degustação]Onde as histórias ganham vida. Descobre agora