Não julgueis para não serdes julgado - parte 2

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– Hevan! Aqui! – acenou Sarah, de cima da escadaria da Catedral, no momento em que viu o elfo em meio ao povo que frequentava o comércio local. Vestia um manto azul celeste com detalhes em branco, a vestimenta habitual dos servidores da igreja.

Hevan retribuiu o cumprimento, apressando o passo para encontrá-la enquanto ela descia os degraus.

– Já faz alguns dias que não te vejo por aqui. O que tem feito? – indagou a clériga, sempre preocupada com o bem-estar de seu amigo.

– Estou treinando com Mikelah para me tornar soldado real. Isso acabou me tomando mais tempo do que eu gostaria.

– Compreendo. Se precisar de algumas dicas de batalha, pode falar comigo.

Sarah também era jovem – contudo alguns anos mais velha que Hevan –, de cabelos loiros não muito compridos e olhos castanhos. Fazia parte da ordem de clérigos guerreiros da religião local, a qual lutara sempre em defesa do reino, junto ao exército de Arche, e de locais sagrados e mosteiros que viessem a sofrer ameaças externas. Ela ainda era do baixo escalão, mas já possuía mais experiência de batalha que seu amigo elfo.

– Com certeza pedirei – respondeu Hevan. – Vim comprar alguns mantimentos para Mikelah. Me acompanha?

– Mas claro! Vamos! – respondeu Sarah, empolgada por poder fazer algo fora de sua rotina diária.

– Mas claro! Vamos! – respondeu Sarah, empolgada por poder fazer algo fora de sua rotina diária

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Sarah, na visão de Hevan


Os dois caminharam entre a movimentada área de comércio da cidade, buscando tudo que estava na lista de compras. Compraram tomates, cogumelos, cereais e alguns pedaços de carne de cordeiro, enquanto conversavam sobre os assuntos mais diversos. Estavam tão à vontade e distraídos que não perceberam o tumulto que estava ocorrendo próximo a eles, perto de algumas das barracas de vendas.

De repente, Hevan foi abalroado por uma figura pequena, magra, encapuzada e vestida com trapos sujos e velhos. Com o impacto,ambos foram ao chão, e o capuz caiu da cabeça da pessoa que o acertou,revelando uma linda jovem de grandes cabelos loiros – quase ruivos – e encaracolados, olhos verdes como a mais pura relva das margens do Rio Sul e uma pele alva, que mesmo suja, chamava a atenção por sua beleza. Com os olhos marejados e visível expressão de medo, se levantou rapidamente e esticou a mão para Hevan. 

– Mil perdões, senhor! Estão me perseguindo e acabei por não vê-lo! – disse, com uma voz rouca, fina e fraca.

– Mas por que estão atrás de você? – perguntou Hevan, ainda meio confuso, erguendo-se do chão.

Antes que a garota pudesse responder, quatro homens grandes e trajando vestes parecidas com os dos vendedores locais surgiram de um beco, apontando para a jovem.

- Lá está ela! Peguem-na!

– Ela está com aquele elfo safado! – gritou um deles, carregando um cutelo na cintura. – Eu deveria saber!

– Por favor, senhor, me ajude! – clamou ela, olhando para Hevan. Não resistindo ao olhar de piedade da garota, ele puxou-a para o meio de um aglomerado de pessoas que acompanhavam um número musical em meio à praça. Sarah foi com eles, observando os homens que os perseguiam.

– Peguem-nos! Ladrões! – bradava o mais gordo dos perseguidores.

– Aqui! Rápido! – disse Hevan.

O elfo fez uma brusca mudança de direção para a esquerda, passou pelo meio de duas barracas que vendiam joias e entrou por uma portinhola de pouco mais de meio metro de comprimento, terminando dentro de um pequeno edifício abandonado. A garota entrou logo depois dele, seguida por Sarah. Os três se encostaram na parede de pedra do local e ficaram observando a movimentação do beco através de um buraco. Ofegantes, tentavam fazer o mínimo de barulho possível ao respirar — algo que a jovem parecia dominar muito bem. Alguns segundos depois, viram os quatro homens passarem em outra direção, ainda aos berros.

— Não sei o que deu em Mikelah para apadrinhar aquela coisa orelhuda! — disse um deles, já longe de onde Hevan e as garotas estavam. Aguardaram mais uns instantes e então Sarah deu um suspiro.

— Acho que despistamos eles!

A jovem, com um sorriso, concordou com Sarah. Olhou para Hevan, que ainda tentava retomar o fôlego, e dirigiu a palavra ao elfo, externando sua curiosidade.

– Esse é um ótimo esconderijo. Como encontrou esse lugar tão rapidamente? Já esteve aqui antes?

– Descobri essa construção quando ainda era uma criança. A usava para me esconder dos meninos que me caçoavam.

Ela lançou um olhar de pena para Hevan, que inspirava o ar por uma última e longa vez antes de questionar a garota.

— O que aconteceu, realmente? Um deles nos chamou de ladrões! Você realmente roubou um deles?

— Sim — respondeu, após titubear por um instante. — Não queria roubar, mas sinto muita fome, e...

— Não acredito! — disse Hevan, exaltado, interrompendo-a. — Eu ajudei uma criminosa! Vou te entregar para aqueles homens!

De forma quase materna, Sarah repreendeu o rapaz.

— Hevan Arlock! "Não julgueis para não serdes julgado", diz o ditado! Talvez essa pobre alma esteja falando a verdade, e a luta pela sobrevivência tenha falado mais alto que sua dignidade como ser humano!

Sarah era a única que sabia seu verdadeiro sobrenome, já que Mikelah sempre aconselhou o rapaz a não mencioná-lo a ninguém. Contudo, seu afeto por Sarah era tão grande que ela se tornou sua confidente, bem como sua conselheira.

Por isso o elfo logo percebeu a sabedoria nas palavras de sua amiga, sem nem ao menos pensar em argumentar. Sabia bem qual era o sentimento de ser julgado e discriminado pelos outros. Além do mais, graças a Mikelah e Thelma, nunca havia passado por necessidades. Como agiria caso estivesse desesperado por um prato de comida?

Certo de que não saberia responder, se virou para a jovem e olhou com firmeza para seus grandes olhos verdes. Hesitou por um momento e então entregou a ela sete moedas de prata.    

— Tente encontrar novas roupas e algo para comer.

Ela abriu um sorriso sincero, daqueles quando uma criança ganha um presente que quer muito. Abraçou Hevan em agradecimento.

— Muito obrigado, senhor elfo! Nunca esquecerei da sua bondade! Ainda irei lhe recompensar! — e saiu pela portinhola.

— Muito bonito e nobre de sua parte, Hevan! — disse Sarah, batendo palmas. — A que se deve essa mudança tão repentina de pensamento?

– Ponderei e concluí que você tinha razão, Sarah. Mas, acima de tudo, ao olhar para os olhos daquela moça, senti em meu coração uma necessidade tremenda de protegê-la.

Após refletir por um momento, completou:

– Preciso pensar agora em qual desculpa darei a Mikelah para justificar sete moedas de prata a menos após todas as compras!

...

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Arlock - um conto de Ellora [Degustação]Onde as histórias ganham vida. Descobre agora