Inesperado - parte 2

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O dia começou a raiar e uma chuva fina caiu para ajudar a apagar o fogo já quase extinto do lugar. Alguns dos poucos soldados remanescentes se aproximaram de Hevan e Sarah para ajudá-los com o corpo de Mikelah, afinal alguns também haviam sido alunos dele.

— Por favor, tragam-no para dentro da academia. Sem ele, o lugar não tem mais propósito de existir. Servirá como seu túmulo, seu lar eterno — solicitou Hevan, desolado.

E assim se fez. Mikelah foi enterrado no centro do salão de combate, com seu escudo cobrindo o peito ferido. No final da cerimônia informal, Sarah se pôs em frente ao corpo e fez uma bonita oração aos Deuses dos Céus pela alma do homem.

A academia não estava muito avariada, mas abriu-se um buraco no teto e a escada que levava para os quartos fora totalmente destruída. Hevan conseguiu retirar alguns pertences soterrados pelos escombros, colocou-os em uma mochila e pegou uma das bainhas caídas no chão para carregar Mordaz, conforme seu pai pedira.

– E agora, Hevan? Para onde vai? – indagou Sarah, que o acompanhou em todos os momentos.

– Não sei, Sarah. Só sei que não tem mais lugar para mim aqui. O meu porto seguro sempre foi meu pai, enquanto todos olhavam para mim com reprovação e medo. Preciso encontrar minha paz, de alguma forma.

Ele olhou por cima do ombro, para onde Mikelah estava enterrado, e suspirou.

– "Pegue Mordaz e vá para Ulrich. Torne-se quem você foi destinado a ser". Foram suas últimas palavras. Creio que seu desejo era que eu fosse para a capital, tentar ser um soldado. Talvez eu faça isso, ou quem sabe desbravarei Ellora em busca da minha origem, entender o motivo de ter parado aqui em Marts...

O diálogo foi interrompido quando ambos começaram a ouvir vozes do lado de fora da academia. Eram várias pessoas discutindo, no que parecia ser uma reunião de cúpula. Ao saírem, se depararam com cerca de quarenta moradores tentando decidir o futuro da cidade e do povo após a devastação. O representante do reino na cidade, conhecido como duque Martinus, pediu a atenção de todos e iniciou um discurso.

— Povo de Marts! É uma tragédia terrível esta que aconteceu na noite de ontem. Todos lamentamos as inúmeras perdas de amigos e familiares, além dos danos materiais. 

Ele pigarreou, visivelmente emocionado, e então se recompôs.

– Contudo, não podemos ficar parados! Primeiramente, devemos organizar um grupo para ir até Ulrich, informar o reino sobre o ataque sofrido na nossa cidade e solicitar auxílio para a reconstrução! Os soldados que ainda estão entre nós devem cuidar da segurança do povo, a fim de evitar possíveissaqueadores,  enquanto tentamos, com pesar, reerguer essas paredes e tetos! Isto posto, pergunto: quem se habilita a rumar até a capital e fazer esse favor a Marts e seus moradores?

Após um silêncio constrangedor, Hevan ergueu o braço.

— Eu vou.

Ouviu-se cochichos e deboches. Vários habitantes achavam um cúmulo o não-humano protegido de Mikelah querer fazer algo pela cidade, embora nenhum deles também tenha se manifestado a favor da missão. Sarah surpreendeu-se com a frieza e rapidez com que Hevan se prontificou a fazer um favor ao povo que, nem naquele momento triste, demonstrava o mínimo de compaixão para com ele.

– Eu também vou. Sei que a minha ordem precisa de mim, mas não vou ficar aqui de braços cruzados vendo o único cidadão decente de Marts aceitar esse fardo sozinho!

Mais cochichos. Alguns se mostravam envergonhados, já outros caçoavam da fala da clériga.

— E eu vou também – disse uma voz atrás de todos os que se reuniam ali. Era a jovem que Hevan ajudara no dia anterior, bem vestida e com melhor aparência, embora apresentando escoriações, possivelmente por culpa do ataque do dragão. — Alana, ao seu dispor!

Arlock - um conto de Ellora [Degustação]Onde as histórias ganham vida. Descobre agora