Prólogo

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Penso, logo existo?
Ou
Existo, logo penso?

No mais cansativo dos dias, segunda-feira, onze da noite, pessoas apressadas – como de costume, claro – paravam e se aglomeravam num cruzamento da grande megalópole. Olhavam aflitas para seus relógios e mantinham a atenção aos seus afazeres de importância transcendental. Sempre presas à rede de interface neural e dispositivos oculares. Imersos e submersos, ou melhor: conectados. O som estridente dos carros de bombeiros se destacava entre as centenas de automóveis errantes que cortavam a enorme Avenida das Américas. O ruído característico dos drones de vigilância se aproximava rapidamente. O barulho era algo comum, mas tais sons característicos anunciavam perigo.

Os bombeiros chegaram com rapidez e isolaram a área, impedindo os espectadores – alucinados e sempre à procura de um espetáculo – de se aproximar do imponente edifício, pertencente ao grupo IdeaL, um dos maiores conglomerados empresariais da América Latina. Os cidadãos se entreolhavam, e os transeuntes que chegavam aos poucos traziam em seu semblante um enorme ponto de interrogação. Especulações se espalhavam em um enorme telefone sem fio, não havia uma causa aparente para tal movimentação, não se via nada, a escuridão escondia tudo. Os enormes edifícios espelhados refletiam as lanternas dos automóveis na forma de flashes, que fazia ondular o argônio e o neon absolutos. Apesar de haver centenas de luzes, a megalópole continuava obscura.

Por caso ou acaso, algum boato se fez útil e as pessoas apontavam para o alto. As lanternas fortíssimas dos drones iluminaram, no octogésimo, no belo parapeito do edifício de vidro espelhado, o que parecia um suicida. Não dava para diferenciar o sexo, foi então que, a câmera curiosa de um dos drones pegou e manteve o foco na cena. Que foi transmitida para todos os canais e dispositivos oculares. O vento forte da altitude balançava o enorme cabelo da garota, e, somado com as fortes lanternas, no solo e nos drones, fez parecer enormes holofotes em um show de música pop. As imagens ecoavam nos olhos alucinados dos curiosos.

Tudo era transmitido em primeira linha. A garota era bela, jovem, com a face bem torneada, sobrancelhas bem desenhadas, pele clara, cabelo liso e bem tratado. Vestimentas formais e bem justas, e, apesar de bem jovem, aparentava ser bem instruída. Agora, se resumia ao pó.

Mas apesar de tudo não era um alarde muito grande, afinal, era somente mais um ser humano que queria abreviar a existência. Mais uma pessoa que planejava desistir da vida. A maior de todas as desgraças, um ser humano que planeja com cuidado o próprio fim. Era um tempo saturado de tristeza. Mais pessoas morriam destruindo a própria vida do que nas guerras, nos acidentes e nos homicídios. A experiência do prazer se tornou enorme como um oceano, mas tão enormemente rasa quanto uma poça d'água. Até mesmo os poucos privilegiados vivem vazios, entediados, ilhados e até presos em seu mundo particular. O sistema social desola toda e qualquer pessoa. A tecnologia é avançada, entretanto, a qualidade da vida é muito baixa. Miserável.

Como um cientista milenar tinha dito uma vez, ninguém virá para salvar-nos de nós mesmos. De todos os idiomas que a garota sabia, nenhuma delas fora útil para falar consigo mesma. Talvez...

A garota falava sozinha:

– Por que você não vem? Gostaria tanto que me fizesse companhia...

Neste momento, apenas o último instante parecia atraí-la. Ela estava determinada. Apesar de muitos procurarem o semblante de desespero nos suicidas, a garota estava calma e até esperançosa. Então vira as costas, olha para cima e então foca à sua frente, como se houvesse alguém, dá um passo para mais perto da beira, abre os braços e salta para a morte. Um belo ritual. Após alguns segundos de queda livre, enfim, desconectada.

Foi uma desgraça, mas apesar de tudo, ninguém se abala e nada muda. Apenas a sujeira para alguém limpar, de qualquer forma, havia os robôs para fazer isso.

– Eu não precisava ficar num lugar como este. – Soou a voz da garota, como em um último suspiro insistente, sobre a imponente megalópole.


O que te leva a fazer alguma coisa?
Tudo é predestinado?

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