Com o braço na frente do rosto para salvar-se, Rodrigo sente que o calor e a luminosidade se dissipam vagarosamente. Sente-se seguro para tirar o braço da frente e olhar para o novo mundo.

Sua respiração trava e então dispara rapidamente. Abre a boca para puxar o ar que, logo aumenta a pressão e é inalado, tanto que arranha sua traquéia a produzir murmúrios intensos. O caixão de metal fechado, a luz pálida fraca há cerca de cinco centímetros de seu rosto. Suas mãos para baixo, o corpo esticado. Máscara de oxigênio. A respiração se estabiliza em ritmo normal. A visão normal. A sensação do toque volta. A caixa de metal gelada e esterilizada...

Segundos mais tarde a caixa desliza para fora e uma máquina vem para tirá-lo do local. Segue para os trilhos longe dali: galpões gigantescos no breu atormentador. A respiração acelera e a cabeça começa a latejar, os sons machucam. Rodrigo tenta se mover, mas ainda não consegue, as dores no corpo ainda o fustigam.

Ele continua deslizando pelos trilhos da máquina.

– Agora... – Soou a voz de Átropos – nos limitamos apenas em softwares e em hardwares, avançados, óbvio, mas ainda não encontramos uma forma de criar novos universos. O lugar onde estávamos era feito de pura informação, era uma imitação da realidade.

A voz sintética lhe penetrava a mente e acalmava-o.

– Muito tempo se passará, não apenas cinquenta ou sessenta gerações, mas muitos milhares, para que possamos criar mais universos. O fato é que a tecnologia está avançando a passos largos e desde que tomamos conhecimento dessa nossa aproximação da verdade, ou seja, de que as leis físicas são códigos e algoritmos, passamos a traçar um paralelo e entender melhor nossa própria natureza, a reproduzimos num mundo arquitetado e então passamos a explorar seus potenciais.

Rodrigo estava começando a entender seu lugar na existência, não seu propósito, claro, mas seu lugar no espaço e no tempo, e além disso, percebeu que seguindo o caminho poderá encontrar seu propósito.

– O mundo passara por diversas atualizações até chegar ao seu estado atual. O utilizamos para estudar o comportamento das massas e desenvolvimento de sistemas, para solucionar os nossos problemas.

Essas últimas palavras ecoaram em sua mente. Agora estava começando a se encontrar, tudo começara a fazer sentido, seus devaneios sobre as cadeias utilitárias e inutilidade da existência parecia um raciocínio estranho e embrionário. A realidade tinha se mostrado ainda maior e mais fascinante do que jamais pensara antes.

Qual é o fundamento da verdade?

Eis que então o breu se dissipou e Rodrigo pôde ver máquinas se aproximando e soltando os tubos conectados dele, o soro na veia, a sonda no nariz, a máscara, o tubo anal; por baixo da caixa, soltaram os tanques. O impacto e a força, somadas com a precisão das máquinas, o assombrou. Foram injetados alguns líquidos e então outra máquina se aproximou, tirando-o da caixa, erguendo-o e flexionando seus membros. Enquanto ele movia a cabeça e espiava para os lados, notou os outros milhares de máquinas também trabalhando em outros corpos.

– Meu nome é Láquesis, preciso que me obedeça. Articule-se.

Ele o faz, em todo o corpo.

– Fale.

– Onde eu estou?

– Diga seu nome, sua idade e o local onde mora.

As memórias se confundiam em sua mente, as falas, as imagens, as paisagens, os pensamentos, os movimentos, cheiros e sensações. Centenas de milhares de nomes, centenas de milhares de pessoas, de memórias, de sensações. A realidade não era realidade.

Sentiu-se vivo pela travessia de um rio com sua tribo; sentiu-se desamparado quando o escolheram para o sacrifício no altar do templo de Anemospília durante o terremoto; sentiu-se sufocado pela lança no pescoço; sentiu-se orgulhoso quando matou o último espartano na batalha de Termópilas e poderoso enquanto fodia as quatro mulheres depois da guerra; ficou enjoado quando sentiu o cheiro de mijo e merda na batalha de Salamina, o corpo molhado, cheio de terra e sangue, exausto e fraco; sentiu-se deus quando foi nomeado Augusto; quando cruzou os Alpes com os elefantes para destruir o império romano; quando venceu o avanço dos islâmicos...

Sua mente girou, seu cérebro pareceu fritar.

Soube que foi um nobre respeitado; que foi um clérico corrupto; vendeu indulgências e deturpou as palavras da bíblia para seus objetivos; soube que não foi absolutista, mas ajudou a matar o Luís XVI...

Ainda erguido fraquejou e se pôs a chorar quando lembrou da fome e da peste, da guerra e destruição, participou da história como escravo, participou da mesma história como senhor. Matou, estuprou e roubou.

O choro ecoava pela sala atemporal. Seus suspiros. Suas dores mais profundas.

Sua esposa e seus filhos dizimados pelos Otomanos; seus irmãos fuzilados na trincheira, morrendo de infecção, sufocados e espumando pelo gás mostarda; o tiro na cabeça; a perna amputada; o alcoolismo e a depressão; sentiu seu pulmão encher de felicidade quando viu seus filhos crescerem em paz; não aguentara a falência na grande depressão; suicidara.

Respirou fundo e engoliu a saliva, o rosto sujo de catarro e os olhos vermelhos. Rodrigo não era mais Rodrigo.

Lembrou dos mísseis V-2 alemães e do perigo da arma nuclear em suas mãos; lembrou-se do projeto Manhattan e ainda do Enola Gay e recados na bomba; ah... lembrou-se daquela linda manhã quando deixara os filhos na escola e voltava para ligar para seu marido e lembrá-lo de tirar os biscoitos do forno; lembrou do lindo sol que... caía do céu; lembrou-se da sua proximidade e prelúdio de má sorte; estranhou por uns segundos, até que a bola incandesceu e arrastou o mundo em desgraça; os sons emudeceram; a pele queimando; os olhos derreterem; a vida se desfazendo. Lembrou de limpar o pó do rosto com seu bracinho e procurar o seu pai.

O grito estridente explodiu e ele perdeu tudo que podia perder. Silenciou-se e abaixou a cabeça.

– Desculpe-me, era necessário. – Ela disse.

Um suspiro. Tudo escureceu.

A libertação é dolorosa.

– Em sua última vida, você foi Rodrigo, um adolescente qualquer na América do Sul. Você se lembra, teve experiências estranhas de alucinações visuais e auditivas. No entanto, te explico que isso fora causado por uma interferência em seus sistemas.

Arqueado pelas máquinas e nu, ele levanta lenta e forçadamente a cabeça.

– O nome dela era Átropos. – Disse Er.

– Pode ser qualquer pessoa usando um nome falso. Estamos investigando. Não pode ser bug por quê foram muito específicas as atuações dela.

Ele suspira sem entender muita coisa.

– Em todo caso... – Disse outra voz, também feminina – meu nome é Cloto. E...

Pausa...

– Seu nome é Er.

O que é o movimento?

A voz ecoou dentro da sua cabeça, seus olhos arregalaram e a informação os penetrou, vagou pela sua cabeça acionando suas memórias. Rachaduras se formaram na enorme sala esterilizada e passou a quebrar formando fissuras e tudo o mais se fragmentou em milhões de pedacinhos, por trás, nada mais: escuridão. As máscaras que lhe seguravam não mais existiam, o corpo que lhe pesava não mais existia.

Lembrou-se do seu trabalho como psico-histórico, onde previa, por meio das ciências exatas, o comportamento das massas ao longo de períodos específicos; lembrou-se do programa simulação; e de ter entrado para colher dados há duas horas; lembrou-se dos seus filhos e esposa fora da simulação; da sua casa na nova terra localizada no sistema Trappist-1. Lembrou-se de onde estava.

Abriu os olhos e deparou-se com a verdade. Saiu do mundo intermediário e foi para o mundo das formas perfeitas, das essências eternas.

Invente uma cor nova.

SempiternalOnde as histórias ganham vida. Descobre agora