Caverna dentro de caverna

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– Desculpe-me, não posso te deixar se apegar mais. – Disse Átropos em tom persuasivo. – Daqui em diante não faz mais parte do seu controle. A simulação era controle seu, agora não mais.

O mundo perdia a forma, aos poucos os objetos perder-se-iam as cores e então as formas. Eis que os tecidos, a madeira, o material sintético, até os átomos se dissolviam. Fedra se deteriorou em sua frente, desamparado ele tenta juntar seus pedaços, mas tão logo esvoaçavam diante o caos eterno. As lágrimas em seu rosto escorriam sem toque, deslizavam e de desfaziam ao ar, pelas moléculas e então aos átomos. A voz e o grito não ecoam, pois o ar se desfez.

– Aproveitando efeito colateral, você sofrerá menos. – Pausou. – Desculpa, é necessário. Preciso que chegue ao ponto principal.

Ele cerra os dentes e fecha os punhos a queimar de raiva.

Ouvindo a voz de Átropos ecoando de si em alto e bom som, Er olha pela janela de seu apartamento e vê o mundo desconstruir. O corpo se vai com ele. Tudo se perdendo no escuro.

– Não entendo por quê está fazendo isso comigo! Porra! O que você quer tanto me mostrar? Deixe-me viver! – Gritou. Sua voz não sai, mas ele a ouve em sua mente, tão nítido como seu pensamento.

– Mais uma vez peço desculpas, Er. Minha vontade em mostrar-lhe as possibilidades são maiores do que tudo.

O mundo, e tudo o mais que se pode ver e sentir apaga.

– Então... quer dizer... – Apenas sua voz soou no vazio profundo, em um pensamento. – que... não há qualquer motivo para o sofrimento?

Um suspiro reconfortante.

– Não...

– Você me faz sofrer... – Pausou fazendo força pra continuar, a voz ficando fraca. – por quê quer? – Um grito se desprendeu em sua mente e estilhaçou o vazio. Séculos se passaram – Tudo aquilo, – A voz sozinha no eterno caos. – todas as brigas... todas as conspirações... o ódio, o assassinato e a intolerância... o luto... a saudade, a solidão...

Um choro distante. Átropos desaba.

– Eu perdi meus animaizinhos, meus pais morreram, meus amigos morreram... meus amantes, minha namorada morreu de infecção, meu marido que morreu na guerra. Toda a peste e toda a guerra, sofrimento, tortura... acidente... para nada?

– Sofrimento atrás de sofrimento...

– Para nenhum motivo. – Concluiu Er. – E agora você me arrasta da minha vida, a qual eu pensava ser a verdadeira... para nada?

Os suspiros de Átropos são sua resposta. O choro que lhe deu ódio.

– Não me diga que meu amor, tudo que gostei, tudo que me aproximei, tudo que pensei e todos os abraços que dei não foram para nada? Por Deus, Átropos! Aquele último beijo que dei em Fedra, foi para nada? Ela nunca existiu? – Gritou. Gritou. Gritou.

Átropos chora mais, mais e mais. Sua voz e seus suspiros só podem ser ouvidos por Er. E os gritos de Er só podem ser ouvidos por ela.

O tempo não transcorre mais. Nada acontece. Apenas o sofrimento sem razão alguma.

Talvez tudo o que você esteja experimentando agora
Não seja real, mas é o produto de
Algumas outras, talvez mal intencionadas,
Criaturas.

Er suspira. A eternidade transcorreu.

– Você é egoísta! Tirou-me da minha vida e ainda me jogou na tristeza por quê quis! Por quê queria me mostrar a verdade. Está curiosa da minha reação? – Pausou pela eternidade. – É ético submeter um ser a tamanho sofrimento?

– É ético deixar um ser viver uma mentira? – Respondeu uma eternidade depois.

Er dispôs a chorar mais uma vez e, dentre tantas e tantas vezes, essa vez doeu mais. Não tinha mãos para cobrir a face, não tinha corpo para abaixar a cabeça, não tinha oxigênio para inalar. Nem boca para babar, nem olhos para escorrer. Entretanto, a dor o inundava e as ondas quebravam na encosta. Uma, duas, três vezes. Por milhões de anos.

– Não existe solução, Er. Nunca existiu. – Suspira... – Os valores são contrários e se contradizem. Deixar viver a mentira, ou salvar da mentira? A mentira se torna verdade, mas para quem? – Inspira e exala choro. – De toda a dor que você passou, de toda situação de convivência, você teve que mentir para ajudar, ainda que teve que dizer a verdade para salvar.

– O conforto da mentira... a dor da verdade...

– A dor da mentira e o conforto da verdade. – Continuou ela.

– Dor da mentira, dor da verdade. – Concluiu ele.

O que é real?

– O que é real? – Perguntou ele.

– O caos.

Qual é o começo? Qual é o meio, e qual é o fim?

– É isso? – Er se refere ao vazio absurdo. – Esse é o lado de fora da caverna? – Olhou para o vazio negro absurdo, um não-lugar infinito e sem qualquer caminho, sem qualquer direção, sem norte, sem sul, sem dentro e nem fora. Sem sentido algum.

– Há mais do que você imagina.

– E isso vai dar em algum lugar? – Pausou. – Eu não sou Er? – Pausou. – Existe um ponto final nisso tudo?

– Você é mais que Er, mas pode ficar com esse nome, eu gostei. Não há fim para a caverna, sempre terá uma dentro da outra e outra dentro de outra. Nunca... – Pausou pela eternidade. – nunca acaba. – Mais eternidade. Mais eternidade. – Sempre há um submundo por trás das fundações.

Suspiros...

– Por mais que você me arraste para cima, nunca haverá um fim?

– Não. O mistério é eterno.

Estávamos predestinados a cair em pedaços.

A eternidade continua inabalável com dois nadas dialogando sobre nada.

– Esse abismo profundo é um resumo de tudo, uma metáfora. Você quer ir para algum lugar? Agora que você não tem personalidade, pode escolher do que vai gostar. Aqui nessa abstração, você é sim, condenado a escolher. – Riu.

Os lábios inexistentes de Er tremeram em um choro desesperado.

– Quero sair daqui. Distrair-me. Leve-me para outro lugar, sim?

Seus olhos lutaram contra as lágrimas. Mordeu os lábios.

– Eu não quero existir. Você me entende?

– Claro que entendo. – Disse Átropos, animada. – Vou levar-lhe para meu lugar preferido.

Er sorri.

No vazio do abismo uma realidade começa a se construir.

– Átropos! – Grita Er, em meio a brancura pura. – Me diz quem é você!

– Você vai me conhecer. Não se preocupe.

Ele viu os lábios dela e então um lindo sorriso.

SempiternalOnde as histórias ganham vida. Descobre agora