Sombras na parede

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– Deixe-me conectar nessa tal de internet, ver qual é a razão das pessoas se prenderem tanto nisso. – Disse para si mesmo como quem conversa com um amigo. – Afinal, não posso negar tal avanço, a humanidade está se unindo, é assim que surgem as sociedades. – Fez uma pausa pensativa e então continuou – Cada conexão deu início a uma revolução, e cada revolução deu início à próxima. Ampliar os horizontes, e, nesse novo mundo, há o mundo virtual e o mundo real, ambos igualmente ricos e igualmente completas. Há várias outras vertentes desses dois mundos. A fronteira entre eles está ficando cada vez mais tênue.

– Estar conectado é se comunicar com vários mundos simultaneamente, estar aberto é estar a par de todas as novas revoluções. Singularidades além das singularidades. – Soou uma voz estranha.

Rodrigo não ligou, talvez por estar tão imerso em pensamentos, ou perdido em algum local na enorme rede interconectada. Os fios que escorregavam em seu corpo, conectados na pele e em uma espécie de capacete neural, podiam ser facilmente confundidos com artérias. Que dividiam-se em outras, em outras e em tantas outras. Uma rede fractal na qual a corrente elétrica, sempre barulhenta, fluía para manter a integridade dos outros mundos. Estava em algum dos níveis mais profundos da realidade.

– Estar vivo é estar conectado, a vida é a conexão. – Disse novamente a voz estranha.

Rodrigo começou a se perguntar quem é que estava dizendo essas coisas, como se quisesse lhe convencer de algo. E então, o que veio a seguir o assustou:

– Eu sei quem é você. Está preso dentro de uma caverna e olhando para as sombras na parede, sem ter certeza do que é a verdade.

– Q-quem é você? – Perguntou Rodrigo, assustado.

– Átropos. Não se assuste você entenderá.

Divisível e indivisível

Sou um e muitos.

Noutro dia, após o ritual diário, Rodrigo toma seu remédio e segue a caminho da escola. Acompanhado do crescente barulho da maquinaria incessante e da corrente elétrica onipresente. Sempre atrasado, ele caminha sozinho. Banhado pelo mesmo sol de sempre, pela mesma temperatura, pela mesma intensidade. Tudo se repete, as pessoas, o ambiente e as paisagens. Frente com a janela traseira do automóvel, ele vê a parábola sutil da fiação pelos postes, a ondulação causada pelo movimento, o "fluir" da corrente elétrica. Pensamentos sob as ondulações superficiais momentâneas do oceano. Os mesmos pensamentos. Eles pensam muito alto, lamentou. Em contraste com o barulho e a movimentação, há a mente silenciosa e o olhar apático de uma pessoa perturbada.

De repente, completamente fora de hora e para quebrar a continuidade natural da existência, o tempo desacelerou, o automóvel parou e então começou a seguir ao contrário, o tempo mudou de direção. Fluía agora do presente para o passado. Os sons aconteciam de maneira inversa, todos os vetores inverteram a direção.

Até que por um instante, a luz do sol ficou branca e aumentou a intensidade, tão clara que parecia cegar, cada janela do automóvel transformou-se em uma lâmpada fortíssima. Tudo desaparece e lá está ele de novo, perdido num vácuo. Indiferente, ele fecha os olhos lentamente e respira fundo. Tudo desaparece, e quando abre os olhos novamente, assim, de repente ele se vê em um cruzamento movimentado, olha ao redor como quem está em um sonho e, depois de algumas buzinas e xingamentos, fecha os olhos lentamente.

Suspiros... suspiros...

Sente o vento, ouve o barulho que era barulho e sente a realidade invasiva que era a realidade, seus pensamentos se atropelam, se atropelam, setropelm...

Fica ofegante. Ataques de pânico. Sente o impacto.

O forte estrondo...

O calor sendo propagado do local do impacto para todo o corpo... junto com a onda de choque, jogando-o para longe. Não há mais pensamento.

O carro autônomo evitou o maior desastre, no lugar de fazer algum dano aos outros carros e ferir outros proprietários, foi em cheio no jovem, que agora estava na calçada e gravemente ferido.

À medida que seus olhos fechavam, lentamente, as pessoas se aproximavam. A realidade objetiva: as vozes distantes; a realidade subjetiva: os sons distorcidos; escuridão.

Eu não entendo... pensou ele, tudo pode acabar assim do nada, sem qualquer aviso. Totalmente aleatório. As lágrimas escorreram de seus olhos e ele se lembrou de sua vida, a vida que já não existe mais, apenas uma sombra distante por através da névoa da insanidade que lhe invadiu a realidade. Os sorrisos vagos e os abraços quentes, agora pelo filtro do antipsicótico. Lembrou-se do sorriso de sua namorada, que se fundiu com o choro da mesma pela frustração da doença repentina. O suspiro dela transformou-se no choro engasgado de sua mãe no hospital, no dia que tentara suicídio. Rodrigo chora junto.

Em uma nuvem de possibilidades e superposições inconstantes, finalmente ele se encontra em seu bairro. O calçadão e os Iates luxuosos. A cidade ao longe. O céu laranja, o brilho alaranjado iluminando os prédios e as sombras estendidas para o lado oposto. O bairro permanece vazio. Tal como em sua mente, apenas o silêncio. Entretanto, o barulho constante da enorme maquinaria e o estalar da corrente elétrica advindo das fiações continuavam. Parecia estar perdido no tempo e no espaço, tudo era, de fato, irreal.

O movimento é a imperfeição, tudo morre e se desfaz. Não existe.

Com os olhos inchados e a dor que desapareceu, Rodrigo estremece e fica tonto, a visão antes turva, agora clareando mais ainda e... ofuscada pela existência.

Estranha e...

Os pensamentos se tornam incompreensíveis para quem tenta lê-los, incompreensíveis para outrem que tenta ouvi-los, e entende-los, mas ele sofre e se machuca com as vozes interiores totalmente desorientadas.

Surto psicótico talvez. A realidade objetiva existe, Rodrigo? Ele também se pergunta isso. Onde uma acaba e começa a outra?

Depois de séculos parados em um tipo de catatonia, ele decide então dar o primeiro passo, abrir o olho em definitivo e encarar o mundo. Caminha.

Foi quando, em um instante, tudo desaparece e uma nuvem de probabilidades paira sobre o local, em um flash instantâneo de uma câmera e centenas de holofotes. Lá está ele, atrás de Átropos no dia de seu suicídio.

– Por que você não vem? Gostaria tanto que me fizesse companhia... – Disse-lhe Átropos.

Ele estende a mão para segurar ela, mas ela lhe escapa e, como alguém que abre os braços para a liberdade em um suspiro de paz, ela o faz para a morte. Instante somente. Instante que se faz eterno em seu momento, no tempo paradoxal, preso em seu eterno agora. A eterna morte. Vivenciada a cada instante.

Os olhos arregalados, tremendo, as lágrimas o inundando novamente, o braço estendido.

Segundos somente, mas lá está ele, suando frio e protegendo os olhos. Assim como uma criança que tenta fugir de uma cena aterrorizante de um filme de terror. Uma lágrima cai e, tão somente nesse momento, ele sentiu que estava no chão e a nuvem de inconstâncias desapareceu.

O falatório das pessoas se aproximando, ele flutuando para cima, para a luz da consciência; a dor invasiva do impacto do carro; o quente do sangue; o asfalto gelado...

Rodrigo está na rua morrendo. O barulho do robô do serviço de saúde o acorda para a normalidade novamente, o som da pura realidade. Cessando novamente. Para sempre.

Nunca mais. Nunca mais. Nunca mais...

SempiternalOnde as histórias ganham vida. Descobre agora