Dançando no abismo

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A realidade se transfigura e toda a sua memória se perde no vazio profundo da inexistência. Aqueles lábios e sorriso maravilhoso se encontram à sua frente agora.

O calor divertido e aconchegante de uma dança.

Er sempre adorou esse sorriso, sempre adorou segurar na mão e na cintura de Átropos. Envolvê-la em uma dança e ela envolvê-lo em felicidade. Aquele lindo vestido preto... aquela cabeleira cacheada... sua pele morena, que deixa seu sorriso ainda mais lindo. Os olhos castanho-claros sorridentes e amigáveis.

– Eu te amo. – Disse ele.

Ela sorri e, fechando os olhos, move a cabeça para o lado, apontando para um garçom.

– Que foi? – Perguntou ele, sem entender direito. A luz amarelada ambiente, o lustre gigante, a música clássica. Festa típica da alta sociedade.

– A garrafa, idiota. A garrafa de Whisky com ele.

Ele sorri.

Ela faz uma pausa na dança, abaixa-se e tira as sandálias de lado.

– Está machucando? – Pergunta ele.

– Shhhh... – Ela botou o dedo no lábio dele. Repete o gesto, agora apontando para o outro lado.

Ele vê os seguranças conversando e apontando para ambos.

Átropos se aproxima dele e cochicha em seu ouvido, rindo.

– Me encontra lá fora...

Seu coração dispara e ele fica ansioso demais, suas mãos começam a suar.

– Um...

Dois...

Três. Cada um corre para um lado, Er pega a garrafa e sai para a saída. Átropos pega outra e sai correndo. Os pés descalços atritando no chão e esquentando, fazendo barulhos estridentes em cada deslize. Os lustres gigantes reluzindo os cristais e as joias em todo canto do lugar. O cheiro de perfume... de comida cara... de gente rica.

Esbarrando nos outros, derrubando coisas... eles correm sorrindo, ofegantes pela aventura e pelo medo de serem pegos.

Átropos se joga na porta dupla e vira uma cambalhota, as pernas para cima e a calcinha branca gritando para as pessoas do outro lado. Ela riu da gafe e da cara dos bons costumes se revirando. No instante seguinte Er lhe dá a mão e levanta, rindo quase sem fôlego.

Lá fora se beijam com pressa e, disparam na chuva em direção às ruas solitárias da cidade escura.

Segurando na mão de Átropos, agora ensopados, sobem na escada de incêndio e vão para o terraço de um prédio. Rindo. Gritando e comemorando o Whisky caro roubado.

A noite assombrada pela tempestade... vento que traz memórias outrora vividas... tempos de alegria, tempos de aventura... Lembram da loucura da semana passada, quando pularam o muro e fizeram sexo na piscina de luxo, e ainda do inverno passado, quando invadiram uma casa na praia. E mais de várias outras aventuras improvisadas, em todos os casos lá estava o vento trazendo mais e mais memórias, mais e mais emoções. Tirando o sapato, Er olha para a enorme cidade, as enormes nuvens cobrindo o céu, as ruas acesas, os spotlight das festas e as músicas distantes ressonando por entre os pingos fortes e os trovões.

O abraço de Átropo e o beijo quente...

– A vida nada mais é que uma sombra que anda... um pobre ator que se pavoneia e se agita durante sua hora no palco e, depois não é mais ouvido...

– Shakespeare? – Ele franziu uma sobrancelha. – Que diabo de frase para fechar a noite. Tinha outra melhor não? – Sorriu.

– A tragédia é tão bela, não é? – Fez que ia abraçá-lo, enganando-o, e pega a bebida atrás dele. A abre com certa violência usando os dentes e bebe no gargalo.

Em sua visão para além dos olhos, estava o céu negro, os fiapos de luz e os fractais dos raios se dispersando para o infinito. A verdade tornou-se múltipla: em cada ângulo, um quadro; em cada quadro, uma pessoa a interpretá-lo. Tudo se perde no infinito e no devir do não-ser, na inquietação da psique.

No entanto, Er se encontra no silêncio e, seu vazio agora, completo pela presença de Átropos. Sua vida é escrita e decidida por si mesmo. Ele sorri e... beija intensamente sua parceira.

O beijo foi eterno.

SempiternalOnde as histórias ganham vida. Descobre agora