– Quanto mais próximos da verdade, mais estarão próximos da realidade, ou o que quer que ela represente. – Soou a voz de Átropos. Ecoou pelas paredes da caverna, bumbou e retumbou por através das sombras. A chama da verdade ainda distorcendo-as.
Enquanto Er desconecta os fios, o capacete neural e o soro em seu braço, fica muito mais assustado em saber que aquela voz não sai do aparelho, mas de dentro de si. Da mesma forma que na simulação. Com o capacete nas mãos e os fios pelo corpo, sua respiração dispara. O que está acontecendo?
No instante seguinte um barulho sintético e umas pancadas na porta metálica. Ainda desnorteado, recurvado sobre uma poltrona de coro, numa sala escura... as luzes coloridas acendem e despontam. Ele arrasta a poltrona para o lado e se vira na direção da porta. Ainda escuro.
– Já estou indo!
– Na hora certa! – A voz feminina foi barrada pela porta, soou distorcida. – Vem logo, estamos nos aprontando.
Levantou com certa dificuldade e foi cambaleando para a porta. Sem janelas, sem luzes muito fortes. Na verdade, apenas luz ambiente.
A porta metálica deslizou para o lado.
– Me pergunto quando vai parar de entrar nessa cápsula. Parece um mergulhador. – Disse sua esposa, pouco irritada.
A luz o incomodou horrivelmente, cobriu a face com o braço.
– Poxa, Fedra. Você sabe que quando saio dessa porta, as luzes do quarto não podem ficar acesa.
– Fedra? – Disse ela, cruzando os braços.
– O que foi? É seu nome. – Pausou franzindo o cenho. – Está nos nossos documentos, Fedra.
– Fedra, só?
Ele suspirou.
Fedra inclinou-se para ele, do outro lado da porta, e lhe deu um selinho.
– Meu amor, Fedra. – Er dá uma pausa indecisa como se quisesse deixar pra lá ou até mesmo fugir da conversa, tenta dizer algo, mas não continua, então desiste. Coça a cabeça.
Ela disfarça a frustração.
– Vamos, saia logo desse buraco. Temos um jantar em família.
Antes que ele pudesse falar alguma coisa, ela continua:
– Quero nem saber dessa sua apatia, vá melhorando a cara. – Pausou rapidamente enquanto caminha pelo quarto procurando seu vestido.
Ele apóia o braço no batente da porta e espera acostumar-se com a luz. Observa.
– Você sabe que em dias importantes não pode se enfiar nessa máquina. Não gosto quando você faz isso, essa sua apatia me incomoda. – Continuou ela, aparentando mais irritação.
Ele sorri sutilmente e caminha até ela.
– Amor, sério? Eu só entrei há duas horas. – A abraça pela cintura.
Ela continua procurando. Tenta disfarçar. Ele não sabe se ela tenta disfarçar para tentar evitar briga, ou tenta disfarçar para tentar arrumar briga.
– Você quer brigar ou fugir da briga? – Observou que ela pegou um vestido qualquer e seguiu para o banheiro. Ainda que deixou a porta aberta e não tardou a se vestir. Soube que havia algo errado. Ainda não sabia se ela queria mesmo brigar.
– Amor, me desculpa. Eu entrei na 'maquina' por quê esses dias com a família me deixam nervoso. – Disse em pé, parado como uma estátua olhando para a porta do banheiro.
– Ah! Então nem foi por causa do trabalho?
Ele caminhou até a porta e olhou nos olhos dela.
– Não exatamente, mesmo que eu não tenha feito muita coisa, é necessário calibrar os algorítimos... – Viu que Fedra não deu muita atenção e aparentou estar irritada com a explicação. Aproximou-se. – Com o tempo isso vai acabar, te prometo. Me desculpa, sim?
– Poxa, amor. Você sabe que eu não gosto quando entra lá! – Arrumando o cabelo, lhe dispara um olhar ameaçador.
Ele segue para sua gaveta e se dispõe a se arrumar.
– As crianças também vão? – Perguntou ele. – Se não me engano Safo ia para a casa da amiga.
Silêncio. Nenhuma resposta.
Er se contorce por não saber se disse algo errado.
– Amor?
– Hoje é quinta-feira. – Ela responde irritada.
Odeio essa mulher, pensou.
– É só sábado que elas vão à festa. As festas são aos sábados. – Disse ela, indiferente.
Terminando de abotoar a camisa social, ele pensa falar alguma coisa, mas hesita. Vai para janela e olha o clima.
O sol banhando o local, prédios metálicos se esgueirando e o elevador espacial subindo rapidamente. São quatro e meia, mais ou menos.
– Que horas são o jantar?
– Às sete.
Ele suspira.
Ela sai do banheiro, seu vestido azul, o cabelo preso com um cachinho no lado direito.
– Você está linda. – Sabe que ela não pensa isso, mas disse para amenizar a situação. – Adoro azul.
Fedra lhe dirige um olhar carrancudo. Aproxima-se dele.
Arrumando a gravata, ele olha em seus olhos sorrindo. Recebe o selinho dela.
– Você me ama? – Ela pergunta, chateada.
– Claro que te amo!
Ela desvia o olhar procurando abrigo.
– Sempre que você entra naquilo eu fico me perguntando se vai deixar de me amar, se pensa que sou apenas uma qualquer como as milhares de pessoas que conhece.
– Como pode pensar isso? Eu estou aqui.
– Não é o que parece. Sempre que sai da máquina fica apático e indiferente. Odeio isso. Sempre digo isso a você.
Er dá um suspiro chateado e ao mesmo tempo compreensivo. Não sabe o que dizer.
– Isso vai passar, sim? É efeito colateral. Vem aqui.
Dá-lhe um abraço apertado. Os corações batendo ao mesmo tempo. Fedra irritada, chateada por seu amor.
Um beijo reconfortante.
Os lábios de Fedra ficam frios, seu toque desaparece. A textura da realidade se dispersa em uma paleta de cores obscuras, de azul à roxo, à cinza e à preto. Chuvisca, se perde e afunda. Serrilhados dispostos em um quadro móvel.
Primeiro os lábios se distorcem, segundo o nariz se torna imaterial, terceiro, os seus olhos caem em um vale de estranheza absurdo. Fedra se configura em um quadro surreal de Glitch art. O toque de Er passa por entre Fedra sem encostar. Ela descola os lábios dos dele e esculpe um sorriso sutil, se afasta e lhe diz algo, porém não emite nenhuma voz, apenas um som de estática que escapa de um sintetizador.
– Acreditar na verdade é destruir as possibilidades. – Disse Átropos.
ESTÁ A LER
Sempiternal
Science FictionVencedor do Wattys 2018 Rodrigo é um jovem estudante da classe alta que mora em um bairro luxuoso no Rio de Janeiro, ainda mais tarde, perceberá que não é quem pensa ser, e que, ainda mais, toda a realidade lhe parece estranha. Deixando-se levar pel...