Existência

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                As paredes eram paredes e as luzes eram luzes. Ele podia ouvir o ruído, como uma mosca que zumbe em seus ouvidos, uma estática que permanece no fundo de tudo, emanando das coisas, da boca das pessoas; vozes sintéticas e quebradiças, sem muita emoção.

Os fundos eram fundos, formando uma fileira de quadros infinitos; um depois do outro, um depois do outro. Em sua visão, uma fotografia, que se torna outra e mais outra dependendo do ângulo em que observa. Primeiro o teto de seu quarto, depois a lâmpada mais pra esquerda, o ventilador à esquerda e o resto dos móveis de seu quarto. Sempre um quadro depois do outro e, por trás da parede, ele sabe que tem mais quadros.

O cheiro era cheiro, a temperatura era temperatura.

Seu sentimento era sentimento: tédio, angústia.

No bairro da Glória, um dia depois, às sete e cinco da manhã, o clima estava calmo com o céu azul e ensolarado e nenhuma precipitação de chuva. Terça-feira, bem no início da semana, tudo voltaria a ser como antes, nada fora do comum, tanto que, para milhares de pessoas, a tragédia do dia anterior não existiu de fato, ou, se existiu fora tão irrelevante quanto um pedaço de merda no sapato. Apenas mais um dia. Apenas. Todos voltariam aos seus afazeres e compromissos, à busca incessante pelo futuro de importância absoluta.

A tragédia aconteceu objetivamente, mas para sua realidade subjetiva, era apenas uma terça-feira.

É dia de aula e Rodrigo se prepara para sair. Acorda forçado, se troca, come alguma coisa junto de sua família – ele não conseguia olhar nos olhos de ninguém –, e então sai. Rotina. Como sempre, desce os cinquenta andares do edifício e caminha até o ponto.

A realidade ofuscando os seus olhos. O caminho é o mesmo, o ambiente é o mesmo, o céu azul, o brilho amarelado do sol iluminando as casas e as sombras estendidas. Como ele sempre está atrasado, o bairro parece vazio. E não somente, em sua mente, apenas o silêncio. Porém, em contraste, há um barulho constante que soa como uma enorme fábrica ecoando da megalópole, e, além disso, o estalar da corrente elétrica advindo das fiações. Após solicitar o automóvel, senta perto da janela a observar a fiação e as paisagens.

As mesmas paisagens...

Em um emaranhado, aos poucos ele vê as construções se elevando no horizonte. Pela Avenida Dom Henrique, o antigo Palácio do Catete, com sua arquitetura avulsa, fica para trás novamente; por um lado o Parque Eduardo Guinle como uma ilha verde perdida por entre o mar de cidades; por outro, o Parque Flamengo... por entre os prédios, nota-se uma fenda no concreto absoluto: as raízes do mundo, o calçadão e o litoral se estendendo para além. A música no fundo compondo uma trilha sonora... olha para frente: despontando da realidade, os morros do Pão de Açúcar.

As mesmas paisagens...

O centro se aproxima.

Diante do barulho da enorme maquinaria da megalópole se aproximando, do estalar da corrente elétrica sempre constante e agora, do pensamento dos outros passageiros no automóvel, sempre ocupados, lendo e pensando, Rodrigo se lamenta: não existe nenhum propósito pra isso?

Somos condenados a ser livres.

Ao chegar à universidade, em Botafogo, logo na entrada, Rodrigo – sempre com seu olhar indiferente e apático – analisa o ambiente, os outros estudantes chegando e se enturmando, se juntando em grupos e conversando, presta atenção nos sons da brisa fraca, da maquinaria, da corrente elétrica e das vozes distantes, foca na iluminação e nas sombras estendidas. Aos poucos o movimento vai cessando, primeiro o vento, depois o que provoca os sons, todos param e se paralisam, até a folha que caía da árvore paira no ar. A água do chafariz e a maquinaria cessam. Inclusive a corrente elétrica. O local lentamente desaparece e agora ele se vê sozinho em um vácuo. Indiferente, ele fecha os olhos lentamente e respira fundo. Tudo desaparece.

Entra na sala e, sem dizer uma palavra, senta em um lugar, pega o material e se debruça na carteira. Fico impressionado, tudo parece ser mecânico e objetivo, arquitetado para funcionar de um jeito e somente de um jeito. Devaneios apenas... esse deveria ser seu sobrenome, devaneios... As vozes dos outros alunos vão ficando abafadas e ele começa a se perder em pensamentos, cada vez mais imerso, cada vez mais profundo.

A lousa se deforma em uma pintura holográfica tridimensional, eis que então um olho se abre lentamente e então desaparece em meio ao conteúdo da matéria. Nos olhos dos alunos, em seus dispositivos audiovisuais, o complemento do conteúdo e uma baixa descarga de energia são injetados nos seus neurônios.

Durante a aula, o barulho incessante da maquinaria se estendia e chegava a vibrar seu cérebro, somado com o estalar da eletricidade e a leitura subliminar em alta velocidade, que fazia o download do conteúdo para o seu cérebro. Permanece quieto e profundamente incomodado. Eis que então, uma forte sensação de irrealidade toma conta de sua mente, se vê preso em outra realidade. Os sons se abafam e se distanciam, e, aos poucos se emudecem. Ele fica preso em um vazio, o movimento cessa. As cores desaparecem. Tudo se esvaia numa nuvem inconstante.

Por que há algo no lugar do nada?

No mesmo caminho de volta, tudo se repete ao contrário, ele caminha até o ponto e solicita o automóvel, segue para a casa. O caminho é o mesmo, o ambiente é o mesmo. Senta-se perto da janela e apóia a cabeça, a ouvir música, observando a fiação e as paisagens. As mesmas paisagens.

Em um emaranhado, aos poucos ele vê as construções se encolhendo no horizonte, a megalópole se distancia. O céu agora estava laranja, o brilho alaranjado do sol iluminando as casas e as sombras estendidas para o lado oposto. O bairro permanece vazio. Tal como em sua mente, apenas o silêncio. Entretanto, o barulho constante da enorme maquinaria e o estalar da corrente elétrica advindo das fiações continuavam.

Ao subir novamente os cinquenta andares e entrar em seu aposento e olhar pelas janelas, o sol as banhava e iluminava o interior da sala de jantar trazendo uma tranquilidade quase sobrenatural para o ambiente, de certa forma, o laranja forte do sol conectava a terra aos céus, denunciando que tudo era feito da mesma coisa, o céu e a terra não pareciam mais separados, agora, com os raios do sol, eram uma coisa só. Não mais isolados em nosso mundo, e sim conectados com o resto do universo. Nós somos o universo, pensou ele. Observou por mais um tempo a magnífica imagem e então examinou com certa cautela os cômodos: não há nada e nem ninguém, apenas o vazio e o barulho constante.

Feliz por estar sozinho, vai para o seu quarto e realiza o ritual diário, joga o casaco em cima da cama amassando-o, se joga por cima, respira fundo como se tivesse se livrado de um grande peso e olha para o teto. Lá está ela, apagada como sempre, inútil, irrelevante, ninguém a nota, está amarrada em sua cadeia utilitária, porém, à deriva em uma superfície que não se agarra em lugar nenhum. Completamente perturbado por enxurradas de pensamentos, Rodrigo não consegue notar sua estranheza... lá está ele novamente, com seu olhar indiferente e apático, encarando a lâmpada do seu quarto. Totalmente entediado. Preso no caos e na inconstância da realidade. Não há fundamento útil na utilidade, toda utilidade é perfeitamente inútil... a existência é inútil, pensou. A existência era o seu peso. Aonde fora sua felicidade? Transformara-se em angústia, atormentado pela náusea.

Após um longo tempo largado, ele decide levantar e sentar-se na sua cadeira giratória e observar sua escrivaninha bagunçada. Olha pela janela e observa a paisagem desolada da megalópole subindo aos céus há centenas de quilômetros dali, o barulho da megalópole e da corrente elétrica compunham a trilha sonora. A angústia sempre nos acompanhará, disse a si mesmo. Desliga-se por um instante. Respira entediado. Um tempo depois de fazer nada decide conectar-se nessa rede supérflua na qual todos estão presos. Na enorme teia, todos serão devorados pela enorme aranha da tecnologia. Ele se perdeu novamente no tempo e na existência. Como em um paradoxo, ele não consegue encontrar uma saída. Novamente, ele se vê desconexo em um vácuo sem som e sem cor.

Foi como acordar de um sonho, Rodrigo arregalou os olhos e se viu preso na realidade, teria como acordar mais uma vez? Ninguém sabe, talvez a morte seja o 'acordar' da vida, pensou ele. Mas de qualquer forma, estava preso.

Rodrigo sente dor, acordara com um sentimento estranho hoje. Desde que sofrera o surto psicótico, vez ou outra sentia uma coisa estranha na própria estrutura das coisas.


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