Capítulo 07

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Quando o relógio marcou cinco da tarde e vi que as mulheres não pareciam prestes a deixar o andar, saí da minha sala e comecei a dispensá-las. Sei o que o serviço é muito, mas não quero que o meu time viva para o trabalho. Quero que elas descansem, vejam filmes e séries, saiam para festas, bebam com os amigos, cuidem de suas saúdes, passem um tempo com quem amam... Basicamente, é um desejo simples: viva com o trabalho e não para ele. Paloma foi a única que insistiu para ficar até às sete da noite. Pedi que ela fosse embora, mas sua justificava era: se sou sua secretária, então vou embora no mesmo horário que você; a menos que queira me devolver o posto de garota do café. Era um bom argumento, não ousei discordar.

Eu respondia os últimos e-mails do dia enquanto ela estava em uma ligação importante com Danna Vazquez, dona de uma das mais importantes agências de relações públicas do país. Queríamos uma entrevista e sessão de fotos exclusivas com a Dulce Maria, sobrinha-neta da Frida Khalo, para nossa primeira edição impressa. A sessão de fotos seria ousada e incrivelmente artística, enquanto a entrevista teria um teor totalmente feminista desde os tempos da pintora até a carreira da cantora pop. Danna barganhava e Paloma se mostrava uma excelente negociadora.

Assim que terminei meus afazeres, desliguei o computador e aguardei que Paloma finalizasse sua ligação. Não a apressei ou fiquei encarando-a. Peguei meu celular e fingi interesse nele, enquanto escutava a forma como ela era doce e sagaz ao mesmo tempo. Quando a ligação por fim se deu por encerrada, minha mais nova secretária tinha um sorriso no rosto.

— Prepare uma equipe incrível, vamos encontrar a Dulce na próxima semana — eu abri um sorriso largo antes de me levantar para cumprimentá-la. Minha intenção era estender a mão direita e parabenizá-la, mas ela abriu os braços e já foi me apertando como se fôssemos amigas de longa data. Odeio abraços, mas tentei não soar rude nem distante. Dei dois tapinhas nas costas dela e me afastei o mais rápido que pude. Talvez Paloma tenha percebido o meu desconforto, mas não tenho como afirmar.

— Deu por hoje — concluí, enquanto arrumava minha bolsa. Ela tratou de fazer o mesmo e seguimos juntas até o elevador.

Sei que as pessoas costumam ter a necessidade de preencher silêncios, mas não queria que ela fizesse isso naquele momento. Abraços de surpresa, ainda mais de desconhecidos (ou semi-conhecidos, como preferir), sempre me levam para um lugar profundo e um pouco sombrio da minha mente. Eles são quase um lembrete de que o meu corpo ainda está sujeito a intervenção não autorizada.

Apertei o botão da garagem e respirei fundo. Quando as portas do veículo vertical se abriram no térreo, finalmente encontrei minha voz novamente.

— Eu te levo até a faculdade — ofereci, tentando quebrar o clima estranho. Além do mais, era o mínimo que eu poderia fazer.

— Minhas aulas ainda não começaram — ela me informou, segurando as portas sem saber se saía ou entrava. — Começam em duas semanas apenas.

— Vamos tomar uma cerveja, então — foi uma sugestão em tom de pergunta. Não queria que ela se sentisse obrigada a sair comigo por eu ser sua chefe. Se ela precisasse dormir cedo, quisesse ver televisão ou ficar no celular, era direito dela. Na real, eu só estava tentando agradecê-la pelo trabalho impecável e por ter ficado até mais tarde comigo, sem nem ter me questionado sobre as horas extras (embora seja óbvio que ela vá receber por elas).

— Certo, uma cerveja — ela voltou para dentro do elevador e me lançou um sorriso em concordância.

Ótimo. Ainda dava tempo de salvar um relacionamento de trabalho que não tinha motivos para ficar estranho.

***

Planejamos tomar uma cerveja e dar a noite por encerrada, mas já passava das nove quando o garçom trazia uma porção de nachos com carne e uma quarta rodada de cerveja. Minha ideia era contar a ela minha política sobre abraços não requisitados e acabar com a possibilidade de um clima ruim no trabalho, mas a conversa acabou fluindo muito além.

Contei para ela sobre minha mãe e sobre como era redundante dizer que ela era uma mulher forte. Quando você nasce com uma vagina no meio das pernas e o médico declara "é menina", você não tem outra opção que não seja ser forte. A sociedade é patriarcal e machista, logo, seu papel biológico deveria ser apenas o de reproduzir. E tudo que você quiser além disso, precisará do dobro do esforço se comparado a um homem.

Tivemos que lutar pelo direito ao voto, pelo direito de trabalhar, pela liberdade de usar calças ou não usar sutiãs. Somos taxadas de putas e vadias sem que conheçam nossas trajetórias. Nos entopem com roupas cor de rosa e nos dizem como sentar, vestir, olhar, sorrir e falar. Nossas vidas são pautadas em torno de conseguir um bom homem, ter filhos e cuidar da casa. Nossos corpos são moldados para agradar terceiros e não a nós mesmas. E minha mãe, que eu espero que esteja descansando tranquilamente, sempre foi taxativa ao dizer: danem-se os outros, Marcela; no mundo, será você por você mesma. E não é como se eu já não soubesse disso. Não é como se eu não tivesse sido obrigada a aprender isso ainda bem nova.

— Ao que exatamente você sobreviveu? — sua pergunta vinha acompanhada de um olhar sério, o nacho deixado de lado junto com a cerveja. Ela olhava fixamente nos meus olhos, como se pudesse alcançar minha alma atormentada. Em momento nenhum disse ser sobrevivente de algo, mas ela sabia. Como, não sei. Mas sabia.

— Abuso sexual — respondi sem rodeios. Não há eufemismo que ajude nessa situação. — Dez anos de idade.

Paloma respirou fundo e abaixou a cabeça por um instante. Talvez ela quisesse estender a mão sobre a mesa para pegar a minha, mas eu não estava disposta ou confortável, para ser honesta. E acho que ela percebeu. Secou uma lágrima que nem vi caindo e então se voltou para mim novamente.

— Cada dia é um dia de vitória. Não esquece isso —  apenas assenti e respirei fundo.

Eu nunca me esqueceria.

***

Já eram quase onze da noite quando deixei Paloma no seu prédio, localizado a mais ou menos quinze minutos do meu. Ela me contou sobre os amigos com quem dividia o apartamento e ficou de me apresentá-los quando possível.

— Vejo você amanhã — gritei, quando ela já estava entrando na portaria. Ela sorriu e acenou e então fiquei sozinha com meus pensamentos outra vez.

Liguei o GPS para que ele me levasse de volta a Avenida Chapultepec e coloquei uma música tranquila no celular. Fiquei me perguntando por que me abri tão rápido com alguém que mal conhecia. Nina era a única com quem eu conversava sobre o abuso; o trauma. Nem mesmo com Noah, meu melhor amigo, eu me sentia confortável para falar a respeito. Eu amo ele, não me leve a mal, mas Noah é homem e homem não entende as dores de ser mulher nesse sistema de merda. Mas eu entendo, Nina entende e Paloma parece que entende também. E quando contei pra ela, não houve pena, curiosidade ou dúvida. Houve apenas entendimento e acolhimento. E era bom estar numa cidade como aquela, num emprego como aquele e não se sentir completamente sozinha.

Antes de dormir profundamente, enviei o áudio prometido a minha melhor amiga. Queria ter dado detalhes sórdidos sobre o encontro com Stéfan, mas contei como Paloma se mostrou indiferente a ele e sobre como ficamos trabalhando até tarde e sobre como conversamos sobre milhões de coisas enquanto tomávamos cerveja e sobre como ela parecia legal e sobre como era bom não se sentir sozinha e sobre como eu queria que Nina estivesse ali e pudesse conhecê-la também.

— Vocês seriam boas amigas — deduzi, com um bocejo no meio da frase. — Ela também gosta de abraços.

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Cheguei com capítulo novo. Atrasado, mas cheguei ♥

A história da nossa Rainha tá tomando uns rumos bem inesperados (acreditem, gente, eu começo a escrever sabendo o início e o final; todo o resto vem surgindo por conta própria), mas não é que tô amando descobrir tudo isso com vocês?

Ficar longo de wattpad por tanto tempo e precisar escrever com prazos e essas coisas, me tirou um pouquinho o tesão do processo de criação. Mas aqui, com vocês, eu tô me sentindo bem a vontade e feliz por cada palavra, cada linha e ponto final. 

Então, ó, muito obrigada, viram?

E aproveitem para me dizer o que estão achando da história!

Besos y hasta la próxima semana!

Rainha do Pouco CasoWhere stories live. Discover now