Capítulo Um - Parte 3

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— Então é aqui que você está se enfiando pra treinar.

Olho para baixo. De todo mundo que podia aparecer atrás de mim, eu não esperava Natasha.

E ela não ia estar aqui à toa.

— Aconteceu alguma coisa? — Pergunto.

Ela balança a cabeça e se encosta na parede, apoiando a bengala ao seu lado antes de cruzar os braços.

— Eu só não ia ficar em mais uma das reuniões de dona Edna.

Ah. A mesma coisa que eu, então.

Continuo subindo a escada - me dependurando pela parte de trás - até logo antes do patamar. Não é muito alto, mas não sou louca de ir mais alto que isso quando só tem o chão de concreto debaixo de mim e não confio nos meus reflexos se cair. Balanço o corpo uma, duas vezes e solto as duas mãos de uma vez, mirando no degrau abaixo de mim. E mais um. E outro. Não é fácil, mas eu consigo descer ao menos seis degraus assim e isso é bem mais do que achei que fosse conseguir nesse tempo.

— Faz sentido — Natasha fala.

E eu preciso descer porque já exagerei demais nos braços hoje.

Começo a descer os degraus do jeito normal - sem pular de um para o outro, no caso.

— O quê? — Pergunto.

— Você treinar assim. Faz sentido pelo que vi você fazer antes. Não é a mesma coisa rígida da maioria dos draconem. O que também explica o bastão.

Pulo para o chão e desenrolo a corda que deixo presa em um dos corrimãos. Não sei como ela ainda não sumiu, mas sei que se for para eu lembrar de trazer a corda para cá sempre que vier treinar, isso não vai acontecer. Então é melhor correr o risco.

Calma. Um minuto de descanso, pelo menos. Não adianta forçar e eu sei disso.

Me encosto na escada e olho para Natasha. Ela continua parada na mesma posição, como se não tivesse nada melhor para fazer e fosse ficar parada aqui até a reunião do dia acabar e Lena descer - porque se ela está aqui, é porque Lena está no apartamento de Nai. E, pensando bem, não faz sentido Natasha estar aqui.

— Não era melhor você estar lá em cima também, discutindo sabe-se lá o quê que estão tentando organizar hoje?

Natasha levanta uma sobrancelha.

— E para quê eu ficaria lá? Sou só uma lutadora. Eu vou para onde mandam, mais nada.

E eu sou uma idiota que não se lembrou que quase ninguém sabe da verdade sobre Natasha. Nem dona Edna sabe.

Suspiro e me sento no chão, ainda segurando a corda. Preciso conseguir descansar e colocar a cabeça no lugar, de alguma forma. Relaxar por uma noite que seja para ver se paro de me esquecer das coisas desse jeito.

— Lena está me contando tudo o que decidem — ela continua. — Do mesmo jeito que tenho certeza que dona Edna ou Nai estão contando para você.

Ou seja, ela está dando sua opinião sobre tudo, também. Só não está fazendo isso isso diretamente.

Natasha continua me encarando e não preciso nem olhar para ela para saber disso.

É surreal pensar que estou sentada em um beco nos bairros altos, com uma pessoa que na verdade é um dragão me encarando. Não deveria ser possível. Tudo o que eu aprendi a vida toda diz que isso é impossível. Dragões não se envolvem com os problemas do mundo há milênios - mas eu tenho a marca de um dragão na cintura para provar que nem sempre é assim e não me esqueci do que Augusto me mostrou. Dragões não têm forma humana e qualquer história desse tipo é só invenção das pessoas que querem lucrar em cima das histórias.

Mesmo assim, Natasha está aqui. E está aqui há anos, desde bem antes de eu ser banida, conhecida por uma lutadora por quase todo mundo nos bairros altos sem ninguém nunca nem pensar que ela poderia estar escondendo alguma coisa assim...

E foi ela quem falou que eram dez família como a minha - uma para cada um dos grandes territórios dos dragões. Faz sentido, mas...

Não faço ideia de quando ou se vou ter outra chance de falar com Natasha assim, a sós.

Olho para Natasha.

— A minha família — começo. — Acho que entendi porque ficamos aqui e sempre fomos caçados. E o que era o papel das outras famílias também.

Ela levanta uma sobrancelha.

Droga. Como falar isso sem soltar um "eu sei que tem um dragão debaixo da cidade central"? Porque pode até ser que ninguém venha aqui ou preste atenção nesse beco, mas tem coisas que são perigosas demais para serem faladas assim.

— Tem a ver com o que está no castelo, não é?

Porque ela sabe o que está debaixo da cidade. Não tem como um dragão não saber que tem outro por perto, especialmente um dragão do tamanho daquele. Não me esqueci que só sua cabeça era mais de duas vezes minha altura.

A postura de Natasha muda e aperto a corda com força. Não. Não foi algo físico. Ela ainda está encostada na parede do mesmo jeito, com os braços cruzados. Mas tem alguma coisa na forma como ela está olhando para mim está me fazendo querer sair correndo - e é completamente diferente da postura intimidante "normal" de Natasha.

— Essa não é uma conversa para esse lugar — ela fala.

Droga.

— Mas você não está errada — Natasha completa.

Solto o ar de uma vez. Pelo menos isso. E faz sentido. Se Raivenera foi construída em cima de um dragão adormecido e minha família tinha algum tipo de ligação com os tais protetores dos dragões, então faz sentido que tenha sido por isso que viemos e continuamos aqui esse tempo todo. Esse poder que é diferente do normal dos draconem, mas também não é nada parecido com os necromantes... Isso existe porque nós protegíamos os dragões adormecidos.

E se realmente estou certa nisso tudo, quer dizer que existem mais dragões adormecidos nos grande territórios - e tenho a impressão de que esses dragões não são como o ryu ou os outros que têm territórios menores e conhecidos. Eles são algo mais, ou não seriam a marcação dos grandes territórios e nem teriam deixado famílias com um poder completamente diferente para protegê-los.

Olho para cima. Não faço ideia de quanto tempo a reunião de hoje vai demorar. Só essa semana, já teve dias que ficaram lá por menos de meia hora e dias que ficaram até depois do almoço. E Natasha é a única pessoa que eu sei que pode me explicar tudo isso.

— Meu apartamento... — começo.

Aquela impressão assustadora ao redor dela desaparece e Natasha balança a cabeça.

— Outra hora, Ana. Eles já estão terminando.

Droga.

Me levanto e desenrolo a corda que quase amarrei ao redor do meu braço. Nem notei que estava fazendo isso, mas...

Natasha olha para a corda.

— É meio idiota você sair sem o bastão, não é?

Termino de desenrolar a corda de uma vez, me afasto tanto de Natasha quanto da escada e começo a pular.

— Preciso aprender a não depender dele — falo.

E é masoquismo querer falar enquanto estou pulando corda. Mas isso já foi normal para mim, antes, então é melhor voltar a ser.

Ela balança a cabeça e pega sua bengala de novo antes de olhar para cima.

— Não é assim que funciona. E eu não sou esse depósito de conhecimento que você pensa.

Paro a corda.

— Como assim, "não é assim..."? — Começo.

Natasha balança a cabeça, mas já está saindo do beco.

Merda. É tão difícil assim alguém responder alguma coisa de forma direta, para variar?

Respiro fundo. Foco. Eu vim para cá para treinar, não para ficar fritando com tudo que não tenho certeza de como funciona ou que não entendo. Isso fica para depois. Ou, pelo menos, deveria ficar.

Marcas de Sangue (Draconem 3) - DEGUSTAÇÃOWhere stories live. Discover now