Capítulo Dois - Parte 1

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Me encosto na parede de outro beco entre dois prédios. Esse lugar foi meu melhor achado nas últimas semanas: está logo ao lado de um carrinho de cachorro quente que tem de um a tudo. Ou seja, virou meu ponto de almoço e às vezes de janta, dependendo do que estiver acontecendo e de se vou conseguir comer no apartamento de Nai ou não, porque cozinhar em casa é sem chances. Sempre tem mais umas duas ou três pessoas encostadas aqui, além de mim, mas é muito melhor que disputar os bancos perto da rua.

Dou uma mordida no meu cachorro quente e me inclino para frente para nenhum pedaço de tomate do vinagrete cair. Não mesmo. Estou com fome o suficiente para comer dois desses. Levanto a cabeça de novo e olho ao redor por puro hábito. A mulher quase na minha frente colocou purê de batata no cachorro quente. Louca.

Acho que tenho a tarde livre hoje e não sei se isso é bom. Não adianta eu querer treinar mais. Passei tempo demais ouvindo o quanto exagerar pode ser tão ruim quanto não fazer nada e não posso nem correr o risco de me machucar para valer agora. Mas não quero ficar sem fazer nada. Estar à toa quer dizer que vou ter tempo livre para pensar e isso é a última coisa que eu quero.

Duas semanas de "espera". Sem saber o que vai acontecer, se temos alguma chance ou se vai ser só um caso de comprar a briga porque é o certo, sabendo que vamos perder. Os comunicados dos draconem não chegam nos bairros altos, não para valer, então minha única fonte de informação é Augusto e Maira e eles estão evitando falar sobre as negociações que estão acontecendo até terem certeza de um resultado. A única coisa que sei é que eles mandaram cópias de parte das informações que conseguimos para outras grandes famílias, na esperança de outras cidades draconem ficarem ao nosso lado, mas eu sei que as chances são pequenas. Zeli-Amare é um risco grande demais e tenho certeza que vai ter mais gente interessada em usar o que estavam fazendo naquele laboratório.

No laboratório - com o coração do meu pai. Depois de matarem minha mãe e tentarem infectar o castelo através de nós.

Respiro fundo e dou mais uma mordida no meu cachorro quente. Não vou apertar ele até tudo cair para fora. Não vou desperdiçar minha comida.

E ficar pensando nisso tudo agora não vai dar em lugar nenhum.

Eu só queria que alguma coisa acontecesse. Qualquer coisa é melhor que essa expectativa louca e a sensação de que tudo vai dar errado e é minha culpa - por ter sido a pessoa que disparou o alarme no laboratório, no mínimo. Mas não tinha como fazer outra coisa ali.

— ... do toque de recolher.

Continuo olhando para baixo. Não sei quem foi que falou - um dos adolescente mais no fundo do beco, eu acho - mas eu não tinha ouvido nada sobre um toque de recolher ainda.

— Vocês estão sabendo de alguma coisa? — A mulher na minha frente pergunta.

— Só vi o aviso no quadro.

Um dos adolescente, com certeza. Mas não vou olhar. A essa altura, a maior parte dos bairros altos sabe que a mulher de cabelo azul é a draconem banida. Eu posso até não estar tendo tantos problemas aqui quanto tive ao redor de onde morava antes, mas é bem provável que parem de falar se verem que estou prestando atenção. E mesmo que não parem, quanto menos eu me envolver...

— É briga dos draconem — o outro adolescente fala. — Não tem nem motivo pra isso tudo.

Dou mais uma mordida no cachorro quente. Queria que ele estivesse certo e que não tivesse motivo para os bairros altos se preocuparem. Mas se tem um aviso de toque de recolher em algum megaprédio, não vai demorar para todos os prédios estarem com avisos. Não que eu ache que isso vai adiantar muito, mas pelo menos vai servir para ninguém ser pego completamente de surpresa quando alguma coisa acontecer.

— Será que não tem mesmo? — A mulher pergunta.

Levanto a cabeça. Ela está olhando para mim.

Droga.

Balanço a cabeça.

— É melhor todo mundo estar alerta.

E é melhor eu terminar de comer em outro lugar.

Balanço a cabeça de novo e saio do beco, enrolando o resto do cachorro quente no plástico. De volta para o lugar de sempre, então: o beco onde eu treino. Ao menos não costuma ter ninguém além de mim.

Tem mais gente comentando sobre o toque de recolher quando paro esperando para conseguir passar entre os carros e atravessar para o outro lado de uma das ruas principais. Deve ter sido isso que decidiram na reunião de hoje, então. O que quer dizer que dona Edna provavelmente teve alguma informação nova vindo do castelo. E eu também teria essas informações se tivesse ficado lá.

Alguém grita mais para a frente na rua. Olho para os lados, mas não tem nada de diferente - só os carros passando sem dar a menor atenção para quem está querendo atravessar.

Mais alguém grita, e depois mais outra pessoa e o que quer que seja começa a se espalhar daquele jeito de várias pessoas por perto conversando em voz baixa e apontando... Apontando para cima.

Olho para o alto. Que não seja um ataque, por favor, que não seja um ataque porque não estamos prontos. Não tem como alguém estar pronto para uma coisa dessas.

Nada. Só os megaprédios tampando a maior parte da vista e pedaços de céu com algumas nuvens.

Os gritos começam de novo. Pulo no lugar, tentando ver por cima das pessoas que estão ao meu redor. Nada. Olho para cima de novo.

Uma sombra estranha cai em um dos megapredios.

Merda.

Mais uma sombra e dessa vez dá para ver o wyvern que passa voando bem no alto.

Um dos carros para. Sinto o cheiro de borracha queimada quando quem está logo atrás tenta frear e então o barulho da batida, mas o motorista do primeiro carro já está saindo e olhando para cima também.

Mais um wyvern - e mais sombras, que não sei se consegui contar direito.

Atravesso a rua correndo e vou direto para a entrada do megaprédio.

Marcas de Sangue (Draconem 3) - DEGUSTAÇÃOWhere stories live. Discover now