Ainda que fosse efeito daquela erva estragada que eu tive o desprazer de consumir, a criatura disforme que se aproximava era monstruosa.
Ou eu estava completamente enlouquecido, ou minha mente brincava com a perfeita imagem que eu tinha do meu pai.
Ou talvez fosse os dois.
— João — chamou a criatura. — Tire esse copo da mão.
Copo...?
Devia ter comprado algo no caminho sem perceber, quem sabe roubado...
Foda-se, pensei.
Era tudo culpa dele mesmo. Culpa do jeito ridículo que ele me criou, do exemplo que nunca me deu — ou deu, mas errado —, do cuidado que ele nunca teve ao nos criar.
Como ele tinha a audácia de chegar em mim numa situação como aquela? Como ele tinha coragem de me mandar largar a cevada quando ele nunca largou a pedra?
Naquela amargura psicodélica, eu só não pude perceber o quanto era parecido com aquela criatura.
A cada dia que passava, em cada escolha que eu tomava, mais eu me tornava uma réplica, um mero espelho de meu pai.
YOU ARE READING
Espelho, Espelho Meu
Short StoryÀs vezes somos apenas um reflexo, um mero espelho que colhe os frutos da imagem de outra pessoa. Temos a mente e o coração colonizados por um sistema doentio, problemático. Não sabemos mais quem somos. João também não sabia, mas teve que descobrir. ...