3. Amigas

224 5 4
                                    


Encontraram-se no velório da mais nova delas, ainda que apenas em meses, já que tinham estudado juntas. O clima não era o de tristeza característico dos enterros, mas sim, de alívio. Afinal, Alice vinha definhando há anos consumida por aquele raio de doença que vai matando uma a uma as células dos músculos do corpo, e as amigas assistiam a tudo incrédulas e impotentes.

Lamentaram por fora comemorando por dentro quando Alice parou de ir às reuniões da primeira quarta feira do mês. Não era a mesma coisa botar o papo de oito décadas de convivência em dia com uma enfermeira participando do grupo e Alice comendo de colher ajudada pela intrusa e, dureza!, se sujando toda.

O velório era o the end daquele filme meio drama meio horror que elas tiveram que assistir e que escancarava o fato de que a primeira da turma se fôra, deixando a pergunta no ar: quem será a próxima?

Esticaram o enterro num restaurante em Botafogo antecipando a primeira quarta feira do mês e, como sempre, botaram o papo em dia. Impressionante o tanto de novidade que se arruma em trinta dias - nesse caso, em vinte e três. Falaram de tudo, menos da Alice, afinal o assunto já estava mais do que esgotado. Chamavam a atenção das outras mesas aquelas cinco senhoras vestidas de preto e branco na maior animação, e foi só durante a sobremesa que uma delas traduziu em palavras o pensamento de todas.

- Como vai ser quando chegar a nossa hora?

Costumavam discutir sobre todos os assuntos e volta e meia brigavam - às vezes por semanas até o próximo encontro - mas uma morte vapt-vupt, de preferência dormindo, era unanimidade entre elas. Não havia como discordarem. O pesadelo comum era morrer como a Alice, um pouco a cada dia, uma morte sofrida, escancarada, exibida.

A conversa avançou e passaram a discutir de que forma poderiam ajudar-se, umas às outras, melhores amigas da vida toda, a morrer com dignidade. O café chegou, pediram mais outro, e um licor - por que não? – já que não dava para interromper assunto tão importante. Pediram a conta apenas para se livrarem do garçom rondando a mesa querendo encerrar o turno do almoço, sem a menor intenção de irem embora. Só depois de nova rodada de café com biscoitinhos (que gerou a abertura de nova conta), consideraram o assunto encerrado.

Tinham chegado a uma decisão.

Se diagnosticada uma doença grave - degenerativa ou câncer terminal, apenas estas, outra decisão unânime - se reuniriam em caráter de urgência para deliberar a aplicação do plano concebido naquela mesa de almoço, entre uma colherada de mousse e uma garfada de torta de limão.

O plano consistia em acompanhar discretamente a evolução da doença nas reuniões de todo mês, e quando a enferma em questão não mais pudesse comparecer, atestado incontestável de que a situação tinha se tornado por demais grave, iriam todas visitá-la, no hospital ou onde estivesse, e abreviariam seu sofrimento. Nada de fins prolongados. Nada de drama, pena ou arrependimento. O "como fazer" era o dever de casa de todas, e para isso existe internet. Nenhuma do grupo era grande usuária da rede, mas dar um Google todas sabiam. Ou quase todas. As mais espertas ajudariam as mais fraquinhas.

Menos de um ano depois, Marilia ficou doente. Emagrecia a olhos vistos, e não era dieta. Atrasou enquanto pôde a ida ao médico, fingiu que nada estava acontecendo, chegou a simular um regime, e só quando não deu mais para esconder, admitiu um "probleminha" no estômago.

- Probleminha ou problemão?

- Probleminha. Nada sério.

As amigas convocaram, sem comunicá-la, a reunião de emergência. O plano estava de pé? Sim, claro que sim, afinal, combinação entre amigas é mais forte que promessa.

Dever de casa feito um ano antes, tinham chegado à forma ideal de execução do plano, que consistia em juntar uns calmantes fortes e botar na água de beber da sofredora. Já tinham descartado a lista das dez melhores ervas para matar sem deixar rastro, obtida na internet, por ser complicada demais. A primeira das ervas, a Hemlock, parecia bacana por proporcionar uma morte indolor, mas só era encontrada na Africa do Sul ou em alguns lugares da Europa. A segunda delas, Aconite, foi logo descartada porque uma morte por sufocamento não parecia muito altruísta. Tinha também o Dimetril Mercúrio, a Tetrodotoxina, o Polôno, o Cianeto ou Arsênico, mas nenhuma das amigas tinha netos ou sobrinhos químicos, ou qualquer outra forma de acessá-las. Tudo muito complicado. Um coquetel de Lexotan, Frontal ou Prozac serviria ao propósito, e isso elas tinham como conseguir. Nenhuma admitia o uso, mas todas tinham a amiga do sobrinho da conhecida da vizinha que não dormia sem um deles.

Marilia participou da reunião seguinte, e da próxima, e da outra também, cada vez mais magrinha. Uma tarde, faltou. Ligaram para ela, que deu uma desculpa qualquer, aniversário da afilhada ou coisa que o valha. Trinta dias depois, aparecia com uma acompanhante que a amparava enquanto andava, a ajudava a sentar-se e, também, a se levantar. Não deu explicações, como se não houvesse acompanhante presente e estivessem todas tendo uma alucinação coletiva, mas a alucinação era de carne e osso e não estava ali apenas para enfeitar o encontro, ainda que bem bonitinha.

Lancharam e Marilia só beliscou a comida. Conversaram sobre amenidades, deixaram alinhavada uma ida ao teatro para assistir a uma peça com o Falabella, e quando se preparavam para ir embora, Marilia finalmente falou, pela primeira vez naquela tarde.

- Lembram aquela conversa que tivemos depois do enterro da Alice?

A amigas se entreolharam, um desconforto quase sólido pairando no ar. Ninguém respondeu.

- Lembram, não lembram?

Silêncio total. O momento era solene. Quem sabe viria a admissão da doença, alguma instrução importante, a forma como deveriam proceder?

Como ninguém respondia, Marilia levantou-se, sempre ajudada pela acompanhante bonitinha e, antes de sair pela porta, olhou firme para cada uma das amigas e falou em tom decidido:

- Como pudemos pensar em tamanha barbaridade??!!

Coletânea de ContosWhere stories live. Discover now