7. Meu melhor amigo

101 5 0
                                    


O pouco que li sobre afetos homossexuais não me preparou para o que aconteceu comigo. Saber que meu melhor amigo da vida toda era gay me deixava confiante no assunto, e me fazia sentir superior à maioria dos mortais que olha o gay atravessado.

Conheci Saulo no pré-primário e, desde então, nos tornamos irmãos, mais do que muitos irmãos de sangue. Outros amigos chegaram e se foram, ou ficaram, mas não como o Saulo. Nossa amizade resistiu a dois casamentos meus com duas chatas de quem ele não gostava, e a todas as namoradas que tive, que insistiam em apresentar Saulo às suas melhores amigas. Sim, ele era discreto, ainda que não escondesse suas preferencias sexuais se o assunto surgisse numa conversa.

Foi para mim que ele contou, aos dezesseis anos e chorando, sua primeira experiência sexual, muito mais preocupado com o que seus pais diriam do que com o fato de se saber gay. Foi, também para mim, que ele lamentou a reação deles. Foi, sempre comigo, que comemorou cada trégua familiar – nada como o tempo que tudo amaina, ou mesmo cura. Finalmente, celebramos juntos o perdão e a aceitação, no segundo Natal pós revelação. Também era com ele que eu desabafava minhas dores, e foi para ele que contei o par de chifres que ganhei da Marcia, e para mais ninguém.

Viajamos juntos, dormimos no mesmo quarto, fumamos nosso primeiro baseado, demos risada e tivemos infindáveis conversas existenciais. É provável que o meu extensíssimo currículo de namoradas tenha sido o responsável por jamais terem me visto como caso do Saulo. Aliás, eu me lixava para o que pensassem.

***

Meu segundo casamento acabou de estalo quando minha mulher engordou trinta quilos na gravidez e passou a descarregar em mim a frustração por não conseguir perder peso depois que nosso filho nasceu. Teria ficado casado com uma gorda, mas não com uma criatura infeliz e amarga que, ao invés de atacar o problema de frente fazendo dieta e exercícios, se lamentava e comia cada vez mais. Me enchi. No meio da noite, depois de uma discussão, abarrotei uma mala de roupas e me mudei para um flat. Três meses depois continuava no flat e enfrentava um processo na justiça por abandono de lar. Em meio ao caos, Saulo telefonou marcando um jantar num restaurante a duas quadras dali.

Saulo chegou atrasado e abatido. Achei que eu iria desabafar com ele meus problemas, mas quem ouviu, surpreso, fui eu, a notícia do fim do seu relacionamento de mais de uma década. Saulo estava transtornado. Ao contrário de mim, que tinha deixado Clara, seu companheiro é que tinha saído de casa, também de uma hora para outra, sem dar explicação. Acabado o jantar fomos para o flat. Ele não queria voltar para o seu apartamento, e eu ainda precisava botar para fora os meus próprios problemas. Conversamos por horas a fio. Acendemos um baseado, e mais outro. Foi-se a segunda garrafa de vinho da noite - a primeira tinha ficado, vazia, no restaurante. Eu estava zonzo do álcool e do cigarro, e pela primeira vez em meses, me sentia em paz. A companhia do Saulo fazia bem e eu o convenci a ficar. O dia seguinte era outro dia: ele voltaria para casa, para encarar o vazio do lar, e eu enfrentaria as consequências de não voltar para a minha - duas situações contrárias, mas igualmente difíceis. Simbolizávamos as diferenças, os opostos, o yin e o yang, a dualidade do universo. O abandonado e o que abandona. E aquilo me atraía.

Saulo estava triste, imensamente triste. Já eu, estava feliz, quase eufórico. Tinha tido a coragem de me livrar de um relacionamento pesado, e estava pronto para recomeçar. Para experimentar. Sentia-me abençoado e quis que Saulo se sentisse assim, abençoado como eu. Queria que mandasse às favas o companheiro ingrato. Que fosse o homem mais feliz do mundo.

Olhei para ele, de olhos fechados, a fisionomia triste, a barba por fazer. Não era à toa que as amigas das minhas ex-namoradas insistiam em sair com Saulo. Um homem belo, largado, chapado no meu sofá. Tive vontade de beijá-lo. Por que não? A vontade se transformou em ato. Fui correspondido. Um beijo morno, melado, forte, intenso. Duas mãos que apertavam meu rosto, uma língua que se enfiava pela minha boca adentro, Saulo era o homem de nós dois. Me entreguei a ele que fez de mim o que bem quis. Tirou minha roupa, me apalpou, experimentou, lambeu, mordeu, quase com raiva. Tive medo, mas o prazer foi mais forte e sobrepujou a dor. Dor e prazer, prazer e dor. Imenso o prazer, intensa a dor. Novamente as diferenças, os opostos, o yin e o yang, a dualidade do universo me fazendo sentir completo. Pleno. Uno.

***

Acordei sozinho em minha cama. Se não fosse a bagunça do apartamento, a garrafa de vinho e o desconforto que sentia, teria achado que sonhei. Tomei um banho e um café, e liguei para o Saulo. Celular fora de área. Tentei várias vezes falar com ele ao longo de todo o dia, em vão. Trabalhei com a cabeça em outro lugar e, assim que pude, me vi na porta do seu apartamento apertando a campainha. Saí com o dedo dormente e o ouvido zumbindo sem ter sido atendido. Esse foi o primeiro dia de outros iguais da semana que se seguiu. Deixei recados escritos e de voz. Mensagens no celular, no papel passado sob a porta e em e-mails que, de tão repetidos, passaram a ser copy/paste. "Me ligue. Preciso falar com você".

Vivi uma montanha russa de emoções: da raiva à preocupação, passando pela tristeza e decepção. Queria vê-lo, precisava beijá-lo, senti-lo, conversar com ele, agradecer o que tinha acontecido.

No domingo seguinte passei em casa para ver meu filho, que eu não via há meses. Minha mulher se iluminou pensando que o meu abatimento se devesse às saudades do lar. Mal cheguei e fui embora, antes que ela pudesse achar que eu estava ali para ficar.

À noite o interfone tocou.

- Sr. Saulo está aqui.

- Mande subir.

***

Saulo percebeu tudo errado. Achou que tinha se aproveitado de mim. Pensou que tivesse perdido o amigo hétero e confidente num momento de descontrole. Sucumbiu de vergonha. Não entendeu minhas mensagens. Voltava visivelmente constrangido para me pedir desculpas e me garantir que aquilo nunca mais aconteceria. Tinha sido a tristeza do rompimento de uma relação de tantos anos que o tinha tirado de si. Sabia que era pedir muito, mas esperava que eu entendesse. E que o perdoasse. Fizera as pazes com seu amor, estavam juntos novamente, mas só teria paz interior e se sentiria plenamente feliz se tivesse o meu perdão. Nossa amizade era maior que tudo. Precisava ouvir de mim que estava tudo bem. Perdão, desculpas, perdão.

Com o peito vazio, o corpo pesado, a respiração difícil, e com uma dor imensa, dessa vez sem o contraponto do prazer, abracei meu amigo da vida toda, desejei a ele felicidades, e lhe garanti que estava tudo bem.  

Coletânea de ContosOnde as histórias ganham vida. Descobre agora