"O beijo²"

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Encaro todos na mesa e ainda estão com expectativas estampado em seus rostos. Não sei se isso se deve ao fato de sermos um casal de garotas, ou se simplesmente eles esperam que nos agarremos aqui, em público, porquê alguma coisa na cultura idiota deles diz que isso não é desrespeitoso, mas sinal de amor, malditos irlandeses.

— Vocês estão entregando amigos. São jovens, casadas e apaixonadas. Não há distinções e nem preconceito aqui, não se intimidem. Vamos, se beijam logo! — Ele dá um soco na mesa que me faz pular de susto, mas mal posso me recompor antes de ser surpreendida.

Lauren puxa meu rosto para si e toma meus lábios de uma vez por todas. Estou tão surpresa que não sou capaz de obter reação alguma por alguns segundos. Seus lábios são macios e o selinho é suave, mas me pegou pensando em como seria deixar sua língua entrar. Seu beijo é molhado e escorregadio? É tão inebriante como imagino?

É claro que a deixo entrar apenas para que os anfitriões se convençam e nos deixem em paz.

Só por isso eu a deixo entrar... Sua língua desliza para dentro ao passo em que eu toco seu cabelo macio inconscientemente. Sinto-a explorar-me com avidez, ao mesmo tempo em que seus lábios são suaves e gentis. Percebo que me entreguei completamente ao fechar meus olhos, nossas respirações profundas se misturando. Ela sabe beijar tão bem que eu poderia ficar aqui por horas, mas...

Eu tenho um namorado, quase noivo.

A empurro gentilmente e Lauren entende meu pedido.

Tento afastar os pensamentos enquanto sua boca se afasta da minha e meus olhos encontram seus glóbulos verdes, tentando decifra-los. Sua mão ainda está em meu rosto, e sinto o toque áspero de seus dedos contra a minha pele de maneira calorosa.

— Bravo! — Frank urra.

— É assim que se faz! — O italiano murmura.

Dou um sorrisinho sem jeito e me afasto completamente de Lauren e entorno meu copo de whisky de uma vez. Sinto minha garganta queimar, ao passo que ainda sinto seu gosto na minha boca, nem mesmo o álcool seria capaz de apagar aquele gosto de mim...

[...]

Já é quase dez da noite quando me deito na cama, me embrenhando nos cobertores enquanto escuto Lauren resmungar algo de dentro da banheira. A cortina nos separa, mas consigo ver sua sombra sentada, abraçando os próprios joelhos para afastar o frio. Apesar dos cobertores, a chuva que voltou a cair transformou a casa sem aquecedor em um verdadeiro Iglu. Estava quase cedendo a carência , mas depois daquele beijo, era melhor ela ficar bem longe de mim.

— Por favor, está muito úmido aqui. — Lauren abre a cortina de uma vez, me assustando. Abro os braços sobre a cama para demarcar o território. — Tenha misericórdia, por favor.

Lauren implorou e sua carinha de cachorro sem dono não me fez resistir. Como poderia deixar um ser humano dormindo no frio? Que ser humano eu seria?

— Tá bom, mas se roncar, volta para o chuveiro.

— Combinado!

Ela se junta a mim e me aperto o máximo de um lado do colchão para ficarmos o mais longe possível. Ela se esparrama no restante como se fosse dona dele, deitando de barriga pra cima e cruzando os braços acima da cabeça. Imito sua posição e olho para o teto, tentando encontrar algo além do silêncio.

— Quem diria que levariamos dois dias para chegar a Dublin...

— A propósito, vou ter que cobrar pelas horas extras. — Senti seu olhar em mim. — 900 euros pela hospedagem, pelo prejuízo do quarto e pela viagem, como havíamos combinado, mais 100 pelo carro.

— O quê? Não tive culpa de você não ter puxado o freio de mão corretamente. — Me exalto, olhando para ela com cara feia, isso era um roubo.

— Mas você sentou em cima, não teria descido se sua... Bundona não estivesse em cima. — Ela retrucou, no mesmo tom.

— Está me chamando de gorda? — Arqueio as sobrancelhas, insultada.

— Não foi isso que eu disse. — Ela sorriu com... Diversão brilhando em seus olhos.

Bufei, indignada pela exploração daquela caipira trapaceira.

— Tá, você só pensa em dinheiro mesmo... — Cuspo, virando as costas para ela.

— Boa noite. — Ela murmura no mesmo tom e se move na cama, provavelmente também me dando as costas.

Passo os próximos minutos tentando afastar o beijo dos meus pensamentos, tentando focar em Matthew. Mas ao passo que ele me vem a cabeça, faço comparações idiotas, como o modo que Lauren toca meu rosto, as mãos calejadas do trabalho manual em contraste com minha pele, enquanto Matthew não me toca dessa maneira nem mesmo na hora do sexo. Penso nos lábios dela beliscando os meus da sua língua dançando sob a minha calorosamente, fazendo meu sangue esquentar. Matthew não me beija dessa maneira, ele não...

Me viro para Lauren e dou de cara com seus olhos verdes, ela também estava olhando para mim como se tivesse pensando sobre o beijo, não que estivesse de fato, mas seus olhos traçavam cada parte do meu rosto como se ela pudesse tocar-me com eles.

Engulo em seco, também voltando meus olhos para sua boca rosada, tão convidativa quanto deveria. Deslizo a mão pelo colchão e estou prestes a tocar seus lábios quando algum sininho dentro do meu cérebro me puxa de volta para a realidade. Matthew...

Eu deveria estar me sentindo culpada por ter correspondido o beijo. Meu futuro noivo não merece algo assim, e cá estou, quase beijando-a novamente. Isso diz um pouco sobre meu caráter e estou me sentindo péssima por ter feito isso com ele, mas não pelo beijo em si... Vou confessar. Isso. Quando chegar lá, Matthew saberá cada detalhe do que aconteceu nessa viagem desastrosa, e esse detalhe não ficará perdido nas entrelinhas. No fim, foi só um beijo forçado para não sermos despejadas da hospedaria, ele vai entender.

Quanto a Lauren, ela é só uma caipira babaca que não merece nada de mim além do dinheiro que a devo e pagarei justamente, apesar de suas trapaças.

Lhe dou as costas abruptamente e ouço apenas o seu suspiro antes de me forçar a dormir, amanhã será um longo dia...






Ano BissextoOnde as histórias ganham vida. Descobre agora