Caio Grifo - Pequeno pardal em minhas mãos (vencedor)

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Apesar das ruínas e da morte,

Onde sempre acabou cada ilusão,

A força dos meus sonhos é tão forte,

Que de tudo renasce a exaltação

E nunca as minhas mãos ficam vazias

Sophia de Mello Breyner Andresen

Apesar das ruínas e da morte, tenho um pardal em minhas mãos. Os prédios se avivam com o cair da tarde, se nutrem dessa última luz vespertina que doura as estruturas e precede seu tombar. Infinitos favos sem as minúsculas repartições hexagonais, assim é o céu quando tarda, infinitamente doce e misericordioso — quero dizer, é assim que se revela, mas eu sei seu segredo, sei a qual custo o entardecer se constrói.

Descobri ao ver a capa do livro posicionado na extremidade da estante que mais recebia a luz do sol, pertinho da janela, assim toda esvanecida, estranhamente matizada, o título na lombada era quase ilegível. Enfim, tive que trocar o móvel de lugar e, com isso, você já consegue prever toda a cena, não? Por incrível que pareça, arrastá-lo sozinha foi mais fácil que retirar os livros. Me deixei a devanear, demorei-me a carinhar os volumes, abria os de poesia e lia versos pingados; ao final, tinha um poema inteiro só de colagens: um versinho de Sophia aqui, outro de Drummond ali... uma poesia remendada melhor que qualquer tentativa de costura a qual me aventurei. Batuquei um ritmo alegre nos romances de capa dura — é hilário como um livro fino pode se tornar um instrumento tão eficiente! —, os deixei no sofá, um por um. Digladiei com aquele monte de prateleiras até submetê-lo a um lugar à sombra e realoquei os livros em seus devidos postos. Pude então confirmar minha teoria quando vi o poente ligeiramente menos esplendoroso no dia seguinte — furtiva, a tarde afanava as cores dos livros e então as sublimava em seus gestos solares. Na manhã seguinte, pousei três livros novos sobre a mesinha redonda alocada no antigo espaço que a estante ocupava.

A tarde se sabe finda e compõe seu decair em tons tão tênues, não é? Queria morrer como a tarde faz, mas tenho um pardal em minhas mãos.

A essa hora, você reconheceria a buzina do carrinho de doces que tanto me aborrece, riria ao ver meu rosto se tornar um retalho de amargor enquanto ajeito os óculos, tão impaciente. Pela janela da sala, vejo sua vitrine horizontal e os doces caramelizados, quebra-queixos, cocadas; as rodas tão ruidosas se detêm na calçada da casa da frente. O ornato na grade emoldura a cena: a mãe dá ao menino uma nota, o menino compra um pratinho de cocada, sorri e corre até a mãe que agacha para que ele logo deite uma colher do doce em sua boca.

— Boa tarde, Dona Cecília! — acena a vizinha com o filho já no colo.

— Boa tarde, querida.

Fico enternecida ao lembrar sua boca imóvel no momento em que eu te alimentava; colher por colher, aguardando o som do seu esforçado engolir. Olhava dúbia e mansa a tarde longamente até voltar os olhos para mim. Neste estágio, já não me reconhecia, já não me sabia sua filha, sua mãe, sua amante. Meu nome era tua fome. O fóssil de um sonho de asas cortadas.

Desmemória. Podia sentir a aragem ominosa que soprava em sua mente. A desertificação de suas lembranças. Logo no início, você agonizava sob a impetuosa obscuridade que lhe avançava, relutava contra cada boca de fogão deixada ligada, abstraía-se tempos a fio para colher às mãos laceradas um verso olvidado, esmagava uma fruta para que o sumo lhe rememorasse a receita da torta. Contava-me histórias de nós e, quando não havia mais nada a contar, as inventava. Eu a via conceber um jardim de reminiscências imaginárias em retaliação à destruição que lhe afligia.

Lembra-se daquela noite em que acordou chorando por ter esquecido o nome de Emanuel? Para redimir-se consigo, teceu a finas linhas a história de sua gravidez e dos primeiros meses do menino, cada detalhe caindo como um dente de leite. Ele vem aqui sempre que pode, pensei até em chamá-lo para ajudar a arrastar a estante, mas ele trabalha e tem a Sandra e as crianças. Não quis importunar.

Os dias eram feitos de plumas, as tardes, especialmente. Sei que me tentava guardar. Te surpreendia ao virar a cabeça e reparar você a se delongar em olhares em minha direção, um jeito assim de me fotografar. E eu — sabe que eu gosto das câmeras — gesticulava toda em afetação. Fotos para uma posterioridade nenhuma, eu sabia, mas era gostoso ficar sendo menina com você de novo, escarnecer o esquecimento e zombar do desastre. Até esquecer-se de mim, não me saber mais. Eu diluí, amorfa, em ti. E, não sendo, pude ser tudo. Perdi toda a esperança e fiquei apenas com o amor. O amor natural, sem memória, sem passado, sem forma.

Ontem sonhei que você estava viva. Em frente a uma janela ignota, seu rosto refratava a luz e se apresentava em todas as aparências que um dia expressou, como um prisma. Te via jovem e velha, vivificada. Uma nódoa sanguínea figurava em um lado de sua face, cobrindo sua têmpora e um de seus olhos e se derramando até a bochecha. Permitiu-se esboçar um sorriso apenas, minguado e belo. Seu olhar emanava uma terna compaixão quando abriu, com a ponta dos dedos, a pequena fresta na cicatriz situada onde já havia estado um de seus seios, liberando uma luz iridescente. Afastando a pele com as asas e o bico, saía um pequeno pardal. Acordei com ele em minhas mãos.

Sei a qual custo o entardecer se destrói. Ajeito as cortinas da janela da sala e subo as escadas com a avezinha comportada em minhas palmas. Percorro o corredor. Hesito ainda encostada ao batente da porta do quarto. Renasço. Caminho até a janela. Apoio os cotovelos sobre o parapeito e inclino o corpo para frente. O liberto. E nunca as minhas mãos ficam vazias.


Sobre o autor:

Caio Gabriel Grifo da Silva (2002) nasceu no estado do Rio de Janeiro e reside atualmente em Queimados, cidade situada na Baixada Fluminense. Graduando no curso de Letras e Literaturas pela UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), ambiciona uma carreira docente conciliada à vivência como o escritor que ainda há de se tornar.

Sobre a obra:

"O pequeno pardal fez seu caminho em mim tal como seu ente incorporado faz no conto — lutou para libertar-se das carnes com asas e bico, à revelia de um senso crítico que castra meus projetos ainda em condição latente. O texto vinga por pura vontade de sobreviver e se vinga de um eu-algoz, tornando-se meu primeiro escrito em prosa breve. Contando com um poema de Sophia de Mello Breyner Andresen como epígrafe, sua criação foi espontânea e metódica, se essa for uma definição possível. A própria epígrafe não estava contida em sua versão primeira, assim como a entidade narradora não estava caracterizada em nenhuma instância, ou seja, houve um trabalho contínuo de reconsiderações e recriações até ele se apresentar como está no livro. Como o entardecer, o texto se construiu à sua maneira, eu precisei apenas me debruçar sobre a janela."

Contos finalistas do Concurso de Contos #Ficçomos100kWhere stories live. Discover now