Savana Prates - Dilúvio

337 13 3
                                    

Os olhos sussurram algo que não entendo. Sempre fazem isso antes de me acordarem. E eu acordo do assombro como se me fizesse Alice: pulo de um penhasco e caio para cima. Sempre caio para cima, mas nunca tenho asas para isso.

Abro meus olhos e, tomando um fôlego insuficiente, jogo as cobertas no chão. Lá fora, o inverno chicoteia as janelas, mas aqui dentro não há frio que dissolva a cortina sólida de ar quente e denso. O ar que meus pulmões inalam é gelado; quando expiro, porém, ele resseca.

Posto-me em frente à janela e observo o negrume intenso desta noite fria, a qual ressoa para mim como um infinito abismo — é deste penhasco que caio para cima. A Lua sorridente no céu nublado luta contra a negritude, sua luz pálida é exígua quando penetra o pequeno quarto, fazendo-se sutil por onde alcança. Um leve cheiro de terra molhada permeia o ar, mas sei que lá fora há metros de neve deitando pelo chão e nenhuma chuva que molhe a terra.

Puxo e posiciono a agulha do gramofone para Beethoven conduzir sua maestria sinfônica.

Sob o compasso dos violinos, encaro, por fim, o cavalete no pé da minha cama. A tela é uma massa branca e desnuda que imediatamente devolve meu afronte. Quase a ouço badalar, implorando para ser pintada. Nela, porém, já há pintura: bem no centro daquela brancura inexpressiva, reluzem os olhos já tão conhecidos por mim.

Percebo a Lua como um plano fino que incide na tela. Ao abrigo daquela luz tênue, os orbes queimam. Não há dúvida que coexistam vivos e mortos em um paradoxo. E não tardam em vociferar a habitual ordem em que reconheço meu castigo: "termine a pintura!".

Reduzindo-me, então, à minha insignificante submissão perante a inabalável austeridade dos olhos, submeto-me com lamúria ao seu incessante clamor. Rastejo até o quadro — embora pareça que nade por entre a massa densa de ar — e me sento no banco defronte ao cavalete. Não me permito, sequer por um momento, quebrar o laço que se firmava entre meus olhos e aqueles na tela.

Envolvo o pincel nos dedos frios de minha mão trêmula, esfregando as cerdas delicadas. Mergulho-o na tinta diluída, mas, como já decorre por noites seguidas deste inverno, não sou capaz de com ele tocar a tela. Apoio a testa no quadro e me forço a colar meu olhar nos olhos pintados. O que suas pupilas me escondem? O que a íris marcada encoberta por detrás da tela? Por que clamam a mim para pintá-los se não me permitem?

O calor faz borbulhar meu corpo por dentro. Cedo, então, ao mormaço e retiro minhas roupas, suplicando ao quadro que me deixe pintá-lo. A pele de meu rosto se descola e escorre virgem pelo chão. Sou agora apenas ossos e mente. Meu suor goteja aos montes, descompassa a harmonia de Beethoven, inunda aquilo que uma vez fora firme solo e o desfaz em mar bramido.

O quarto transfigura-se em caixa, aprisionando as ondas de uma parede à outra. A água, em gigantescas elevações, quebra no meio-fio entre mim e o cavalete. A tormenta salgada chacoalha-me com violência, afoga-me.

Quando emerjo da torrente d'água, já tendo me despido e me lavado dos pecados, o surdo som dos violinos ainda ecoa por sobre a maré. O quarto cheira a mar, o que faz arder meus pulmões encharcados.

Agarro o pincel e tento uma vez mais dar face aos olhos, que me encaram, em parte amedrontados, em parte sedentos. Não consigo. O quadro parece caçoar de minha incapacidade. Tal bloqueio me enraivece, a ira fervente trilha meu corpo frio em um redemoinho. Beethoven engrandece fortemente o vigor dos violinos.

Arranco a tela do cavalete e a atiro na parede. Meu par de algozes sente a queda, mas não chora. Jogo no chão as roupas das gavetas e as destruo junto à cômoda, os olhos não me reprimem. Beethoven precipita o ritmo da sinfonia. Viro a cama e rasgo o colchão com as unhas, os olhos me incentivam. Beethoven explode. O cabideiro não sobrevive, o armário vai ao chão, os olhos me aplaudem. Por fim, quando Beethoven suspende o som dos violinos, faço em estilhaços o vidro da janela. Os olhos me vangloriam.

Enquanto os móveis acumulam-se, destroçados, por cima do que já fora um quarto, meus joelhos sucumbem ao cansaço e eu despenco em meio à derrota. A neve se apressa em entrar pela enorme abertura na janela, a fina luz da Lua pode, enfim, cintilar livre por tudo de que se deleita. A gélida corrente de ar é cortante, mas a mim se faz completamente insossa, tamanho é o êxtase em que me encontro.

Diante de mim, há pedaços de um espelho. Minha respiração ofegante embaça a superfície, mas ainda é possível ver meu reflexo. Enxergo-me em uma visão turva de cada escombro do quarto. Cada peça de roupa embebida na água e o odor daquele mar morto são fragmentos meus. Minha agonia reside no suor das ondas. Sou um quarto destruído. Sou a caixa e o mar e a terra molhada e a sinfonia de Beethoven. Sou a neve e a tormenta. E tudo isso me é.

Encaro o reflexo de minha figura abatida. Em um instante, a neblina em minha mente se dilui. Envolvo o pedaço de espelho nas mãos e me levanto do chão úmido. Reergo o cavalete, apoiando nele a tela. Permaneço, sem sequer resquício de medo, diante dos olhos, que secretamente me revelam as mil caravelas escondidas, até então, na sombra de suas íris.

Sustento o espelho ao lado da tela e me encaro. Faço do pincel minha epifania; derramo e escorro a tinta, sem hesitação. Quando me afasto, a luz da Lua delineia o perfil pintado. Nele, reconheço minha face, meus lábios e o olhar marinho daqueles que sempre foram os meus olhos.


Sobre a autora:

Savana Prates, além de vestibulanda surtada, é aspirante a escritora e vegana pelos direitos dos animais. Confessou a si mesma que estava apaixonada pela arte da escrita ainda muito nova, quando se deu conta de que ficar papeando sobre livros com a bibliotecária era bem mais divertido que brincar de pique-esconde com os coleguinhas da escola. Desde então, se arrisca em escrever contos e poemas, pois foi neles que encontrou refúgio para driblar a ansiedade. Considera-se viciada em suéteres quentinhos e em filmes de terror barato. No mais, segue tentando desengavetar os romances.

Sobre a obra:

"Gosto de pensar que a escrita, como todo processo não mecânico, se inicia muito antes de qualquer palavra estar no papel, afinal acredito que histórias são organismos vivos e sencientes, que se contam por si mesmas. O escritor só abre a boca quando lhes convém. Então, antes de tudo, preciso pontuar que Dilúvio é um conto que se contou sozinho, ainda que através de mim.

Me deparei com o coração dessa história em uma fotografia, O quarto destruído, de Jeff Wall. O encontro me causou estranheza desde o início. Fiquei pensando na construção da obra, especialmente em como Jeff compôs aquela cena e o que o levou a fotografá-la. Eu queria descobrir o que ele estava tentando comunicar ao público.

Então, colei a foto na parede do meu quarto, de forma que todos os dias eu pudesse vê-la antes de adormecer e após acordar. Forcei Jeff a me atormentar por semanas, até que o corpo da história veio até mim. Não posso afirmar se foi num sonho ou num delírio — eu e meu terapeuta ainda não sabemos direito —, mas digo com certeza que não foi de todo inconsciente. Eu me vi naquele quarto, em cada parede, em cada escombro. E, de repente, comecei a escrever.

Naquele momento, o quarto estava contando uma história sobre como o processo até o autoconhecimento pode ser destrutivo e como a falta dele bloqueia o pensamento. O personagem pinta um par de olhos, mas não consegue pintar o rosto, e o quadro inacabado o tortura (assim como fez a fotografia comigo), castiga-o com a dúvida da incapacidade. A partir daí, ele mergulha em um completo surto e destrói o quarto inteiro, mas é nessa destruição que ele se entende, se autoconhece, e finalmente termina a pintura: o rosto era o dele próprio, só não podia pintá-lo antes porque ainda não o conhecia.

Sabendo que todo mundo um dia vai passar por essa crise (se preparem!), tomei o máximo de cuidado para construir esse personagem, ele não tem nome e, apesar de não haver adjetivos que lhe atribuam gênero, sua mentalidade foi cuidadosamente caracterizada. Eu queria que qualquer um que lesse Dilúvio não só se sentisse por dentro da mente do personagem, mas também por dentro de sua angústia e, principalmente, por dentro de cada destroço daquele quarto destruído."

Contos finalistas do Concurso de Contos #Ficçomos100kWhere stories live. Discover now