Jéssica Lírio - Saiu para entrega

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Kleber pegou o celular para ver os pedidos dos três aplicativos com que trabalhava. Saudou a notificação trazendo o nome da lanchonete e o endereço da entrega: "CONDOMÍNIO VILA VERDE". Era do outro lado da cidade, zona nobre. Vai ser osso, ainda mais de bike, pensou. O mês estava fraco e ele não tinha conseguido fazer mais que trinta reais no dia anterior. Não podia ficar regulando por aí.

Nada de preguiça, man. Aquela entrega junto com as outras quatro que tinha acabado de fazer completavam uma promoção e isso significava uns 300 reais garantidos em sua conta. Nunca que ele ganhava isso tudo antes de ter sido demitido. No antigo emprego, fazia umas quinze entregas num só dia. Se recebesse pelo número delas, eu tava feito, pensava.

Limpou o suor do pescoço e deu um impulso com o pé, pedalando a bicicleta rosa emprestada da esposa depois que uns larápios roubaram sua moto. Mulher grávida em casa, mãe sem receber aposentadoria, precisava do dinheiro. Desde o começo da pandemia que não conseguia ter uma notícia boa, mas aquele pedido parecia uma virada na sua sorte.

Deu o "cheguei" no app mesmo sem ver o restaurante ainda; não queria se arriscar a perder a entrega para outro motoca. Guardou a caixa quentinha na bag e ajustou a rota no GPS do celular.

O bom é que essa corja deve tá morta agora, refletia sem esconder um sorriso debaixo da máscara. Se por um lado O Vírus dificultara muito a vida de todos, por outro exercia uma limpeza bem-vinda. Não se via mais vivalma na rua, nem cracudo, nem "di menor". Uma verdadeira intervenção biológica a favor das pessoas de bem.

Parou no sinal. Porra, sinal vermelho pra bicicleta? Coçou a máscara apertada. Mal conseguia respirar, mas se era o preço para ficar tudo bem, até que não saía caro. Ele era um trabalhador essencial, a serviço da sociedade.

Além dele, poucos carros; só caminhões e colegas motoboys, os únicos agora que ousavam partilhar as vias públicas às onze da manhã. Mas sua velocidade não melhorava nem um pouco, ainda mais de bicicleta.

Mano, e o calor! O chão fritava e os postes ondulavam. Desviou a vista dos reflexos à frente até um beco mais distante. O aroma do pedido atrás de si despertava seu apetite; era o que mesmo, uma pizza? Já tinha entregue esfihas, bolinhos de bacalhau e até mesmo uma parmegiana. Seu café da manhã já havia se desgastado em meio àqueles corres todos, mas não podia parar para almoçar.

Sem preguiça, man, repetia para si mesmo até ver, ali, entre duas latas de lixo: era um morador de rua. Nada estranho nisso; estranho era o homem, mordendo a canela dele.

Apertou o guidom, sua respiração se prolongando. Apesar de não ter parado desde o alerta, nunca tinha visto um contaminado tão de perto. De longe, parecia ser só outro vagabundo num moletom. A diferença era a carne dependurada em sua boca e mãos. O doente a devorava como se fosse um cheeseburguer.

Instintivamente, buscou o pé de cabra pendurado perto do selim. Descolara com um bróder. Tinham que se virar na pista. Uns andavam com vergalhões fundidos, taco de beisebol; tinha um, o Márcio, que levava um aerossol com isqueiro colado na ponta para esses casos. Era se cuidar ou Aí, foda-se pra você.

Às vezes se perguntava se não deveria ser de outra forma. "Pilote 10 horas por dia, 7 dias por semana e pague as contas! Você é seu próprio chefe!" Se ele era seu próprio chefe, porque se sentia um quase-escravo? Na TV, o governo prometia ajudar; "a economia não pode parar". Ele era um entregador parceiro, um trabalhador essencial, principalmente para si e para sua família.

O maltrapilho avançava letárgico em direção à via. Carros paravam, buzinando durante a travessia dele.

Caralho, pensou, não tem um com culhão pra atropelar esse filha da puta?

Contos finalistas do Concurso de Contos #Ficçomos100kOnde as histórias ganham vida. Descobre agora