Helimar - Quase bicho

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Durvina já estava de pé ariando as panelas e ouvindo Roberto Carlos, as galinhas passeando no terreiro, passarin chorando na gaiola, e embaixo da algaroba o reco-reco na pedra. Era Ciço, amolando a faca. Desde sexta ela queria comer preá ou tatu, ele desconfiou.

Tomaram café juntos, dali ele foi carregar o bisaco e passar óleo na espingarda. Fez questão de carregá-la na calçada. Como aprendeu desde pequeno, não levava a cachorra pro mato, dizia que espantava a caça. Não demore, chegue antes das onze, Durvina da janela.

No mato, Ciço não armou arapuca, nem ficou de tocaia, gostava de matar o preá na corrida, fugindo de uma macambira pra outra.

Durvina tinha uma trouxa de roupas, pôs de molho e foi cortar as verduras pro almoço. No corte da cebola a faca levou uma banda do seu dedo, ficou tonta e achou melhor descansar na cama, tava um calor. Pegou no sono e só acordou com o batido de palmas na porta de casa. Levantou, nem deu tempo de calçar as chinelas, foi ver quem era.

Diga. Ela toda encandeada, botando a mão encobrindo os olhos. Ô minha filha, tô vindo de longe, por aí as casas tão tudo fechadas, nenhum santo pra me dar um copo d'água. Viu que a mulher carregava quatro filhos agarrados na saia. Parecia tudo da mesma idade, descalços, as roupinhas curtas. Todos coçavam a barriga, o menor, tinha uma ferida no umbigo.

Durvina achou melhor chamá-los: Entrem, entrem que eu vou pegar água, esperem aqui. Na cozinha ela pensou que a mulher fosse cigana, sua mãe contava histórias quando era menina e agora se lembrava. Trouxe a poncheira cheia com mais quatro copos. Nem precisava de tanto, minha filha. Obrigado, deus te dê saúde. Durvina foi acompanhando a mulher e os meninos até sumirem na estrada.

Ciço matou dois preás sem muito trabalho, nem eram onze horas ainda. Na encruzilhada da fazenda São Mateus encontrou uma mulher com uma saia longa e um pano na cabeça, quase bate na espingarda. Se benzeu. Apertou o passo.

Entrou em casa pela porta da cozinha, tirou os preás do bisaco e deixou em cima do fogão de lenha.

Venha cá, Durvina, venha ver.

Ela estendendo as roupas no arame do oitão da casa. Você encontrou alguma mulher com uma reca de menino? Encontrei uma mulher, só vi o vulto.

Venha ver o que eu trouxe, venha. Já vou.

Ciço foi tomar banho. Durvina foi tratar os preás. Pôs a água pra esquentar e foi tirando o couro. Na hora de abrir percebeu um maior do que o outro. Enfiou a faca no mais gordo. Gritou por Ciço. Ela no chão, com uma tira de sangue ao lado. Em cima do fogão, tava lá, quatro filhotinhos ainda se formando. Ciço tomou os bichinhos pelas mãos, trouxe pra perto do peito e foi sentar na cadeira de balanço.


Sobre o autor:

Helimar é pernambucano. Nascido no interior, viveu a fase adulta no Recife. Em 2016, escreveu o livro de poemas Coração na sombra. Vive em São Paulo desde 2017. Participou como aluno do CLIPE da Casa das Rosas e do Vocacional de Literatura. Em 2019, publicou Tubarão, seu segundo livro de poemas.

Sobre a obra:

"O processo criativo veio de uma história de infância contada por meu pai. Na pandemia ela me veio na lembrança e escrevi o conto. A obra Vidas Secas do Graciliano Ramos influenciou na escrita de algum modo."

Contos finalistas do Concurso de Contos #Ficçomos100kWhere stories live. Discover now