Jordan Alcântara - Farol de vela

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Sem conseguir terminar a noite, decidiu começar sozinho o dia que teimava em não amanhecer. Com o toque desacostumado, grosso, acariciou a barriga da mulher na cama, e se levantou quase se empurrando. Na frente dos pedidos acesos no altar fez o sinal da cruz no peito e seguiu à beira da praia.

Nos pés nus, o frio do piso de casa, o áspero da areia, o sal da água e o rígido da madeira da catraia. Remou até onde tinha deixado a rede. A lua crescente clareava um quase-nada por cima das ondas que o embalavam. Respirou fundo e assim como vinha fazendo nos últimos tempos, puxou a rede sem esperar demais. Foi surpreendido quando sentiu o peso.

Coçou os olhos com uma mão enquanto mantinha a rede segura na outra e logo descobriu que precisaria de mais força para puxar o bicho. Foi tirando de dentro d'água nó por nó enquanto o peixe se debatia em golpes desesperados. Ainda era noite escura, difícil ver com clareza, mas pelo tamanho do rabo e pela força que fazia, era um graúdo. Finalmente a fase ruim ia acabar, graças a Deus.

Procurando equilíbrio na embarcação, não viu ninguém a quem gritar ajuda e não podia deixar o peixe fugir. Já era um milagre a rede não ter se partido com toda aquela luta, e ao perceber isso, decidiu puxar o bicho pelo rabo. Agarrou a cauda inquieta, juntou toda a força que tinha e arrastou o peixe da água. Caiu de bunda jogando o monstro no chão do bote.

E do jeito que caiu ficou, exaurido pelo cansaço ou pela visão.

Cabelos longos escondiam malmente os olhos que o fitavam. Ele não conseguiu desviar o olhar. O rosto fino, os seios e o rabo de peixe eram partes da mesma criatura.

Não poderia jamais dizer com certeza o tempo que passou fascinado com aquela aparição. Não tirou os olhos dos dela, mas poderia descrevê-la por inteiro, dos cabelos negros às escamas esverdeadas do rabo, como o fez depois ao vilarejo. Viu o vento da madrugada impondo o arrepio na pele daquela mulher-peixe, mas antes que pensasse algo, ela se desfez da rede e se jogou de volta ao mar.

O pescador só conseguiu segui-la com os olhos, tentando juntar seus pensamentos em algo que lhe explicasse o que tinha acontecido. Com os órgãos gelados e as pernas dormentes, se desequilibrou ao se pôr de pé, só pra ir seco com os joelhos na madeira quando, da água escura, ouviu o barulho.

— Conseguiste.

Engatinhou e viu, por cima da maresia, a mulher à beira do barco olhando com seus olhos feitos à mão. O queixo se escondia na água e dos lábios deleitosos uma voz sedosa se destacou acima do som do vento e do mar, clara e instigante como um sussurro no ouvido.

— Me prendeste e me libertaste sem me ter feito mal. O que é que tu desejas mais? Me pede, se quiseres, e eu te consigo. Se a mim me atenderes também um querer.

Balbuciando, hesitante e deslumbrado, o pescador conseguiu pedir os melhores peixes dessas praias e em muita fartura.

— No mês vindouro, pois, joga a tua rede às seis da noite, sozinho, e tira só ao meio-dia, que assim verás mais peixe em tua posse do que nunca pensaste, e saciarás com folga a ti e aos teus.

Assentiu maravilhado. A mulher nadou serena, maliciosa, ao outro lado da embarcação, deixando que a noite se encarregasse de esconder seu corpo nu.

— Quando tiveres o teu querer atendido, o que já é certo como as ondas desse mar, terás, então, que fazer o meu. E o que eu quero em compensação à tua prosperidade é o teu primogênito.

Enlevado pelo fascínio da aparição e antecipação da bonança, o homem, prostrado no barco, concordou. A mulher sorriu sutil e sedutora.

— Desse jeito, então, meu pescador, te espero. — ela disse antes de se deixar cobrir pelas águas. Foi embora exibindo a cauda esverdeada e desapareceu no escuro do mar.

Contos finalistas do Concurso de Contos #Ficçomos100kWhere stories live. Discover now