Clarice Liz - O momento

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E frenesiava-se. Dançava para o luaral em seu infinito particular. Com tanto Sol em seu íntimo via-se fervura emanada de dentro d'alma. Tinha os olhos de fogo e lábios profanos, tragava absurdos. Das más línguas tirava as essências que lhe sugeriam a sui generis — estava em busca daquela boca. A bendita boca que a obrigava a frequentar aquele morredouro. A bendita boca que lhe condenava a continuar pecando e gastando e sujando e beijando e dançando e não ligando. Não lhe acrescia em nada o amor, as crenças e promessas eram jogadas no lixo sempre às vinte e duas, comprado o ingresso pro inferno paradisíaco.

E foi beijando outros lábios, contaminando-se com suas amarguras, que a encontrei novamente. Era o ser mais carnal e predatório da festa. Sem amor, sem sabor, apenas carne. Então, implodiu em choro. Vomitou todas as agonias ali mesmo, na pele dos afortunados. Era o ápice do descontrole. Os pingos de suor e lágrimas faziam-na questionar-se sobre seus atos. Segui-a até o banheiro, para onde correu a fim de expurgar todo o veneno. Acabou ralo abaixo também o resto de dignidade que lhe sobrava para a noite. Posto tudo para fora e já sem resquício de ar nos pulmões, via-se apenas uma carcaça deplorável, um ser leve e tão crucificado.

— Ninguém vai encostar nesses teus lábios de puro vômito — eu disse estendendo a ela um lenço. Em vez de limpar com ele a boca, o fazendo com as mãos, enxugou os olhos barrentos e borrados.

— Quem se importa? Todos são bêbados mesmo. — Foi ríspida ao retrucar, lançando olhares de ressaca. Cuspia seu hálito de aguardente aparentemente satisfeita. Aparentemente.

— Você se importa, e sabe que se importa porque eu estou aqui. — revelei, observando as pupilas da mulher desviarem para seu próprio reflexo. Apoiava uma mão na pia e a outra em mim. Em um abraço soube que desejava fazer as pazes, ao menos por aquela noite. Eu nada disse e de súbit-

— Desculpe, deve ser a bebida. Desculpe.

Não tem porquê. Acalme-se; acalme-se e me darei por satisfeita, mesmo você não recordando. Talvez ao amanhecer, quando precisasse de mim para lembrar do trabalho e então pegar o analgésico. Talvez mais cedo... Não tem problema. Não havia. Jamais houve.

Foi surpresa para nós quando segurei sua mão e a puxei para encostar minha boca em sua boca — nos lábios outrora tão refutados por mim. Foi um segundo apenas, o suficiente para que ela se perdesse em mim e eu lhe cedesse um pouco da doçura que precisaria para seguir a noite. Ao recobrar-me e reergue-se, ela viu a marca do batom no espelho. Tocou os lábios, sentiu meu recado. Se viu beijada e sentiu-se doce pela primeira vez naquela noite.


Sobre a autora:

Clarice Liz de Lima Nobre, ou simplesmente Cacá, é cearense, geminiana do mês de maio. Aprendeu a ler e falar cedo, e começou a escrever suas histórias maluquinhas no livro de redações do 3° ano. Desde então, não parou mais: sempre que surge uma ideia ela escreve em qualquer lugar e, quando dá certo, põe em prática.

Sobre a obra:

"Soube do concurso quando já estava quase na metade do prazo. Fazia tempo que já não escrevia por falta de ânimo e tempo, mas resolvi tentar apenas para 'ver se saía algo'. Fiquei uma semana inteira pensando sobre o que escreveria, e minha mente insistia em me subestimar.

Na noite anterior ao prazo final, passeando de carro desanimada... simplesmente comecei a rabiscar algo no bloco de anotações do celular. Acreditei eu que aquele fosse o meu conto, afinal, estava bem completo. Porém, quando estava tudo pronto para ser entregue, eu encontrei velhas redações em uma pasta, e uma delas me fez apagar tudo e perceber que não era realmente aquele conto que eu queria enviar. Foi um minuto apenas, e simplesmente fui escrevendo ligeira e sem parar, sem rumo certo, mas sabendo onde queria chegar. Senti-me satisfeita ao acabar, aquilo sim era eu, meus sentimentos e minha situação estavam ali. Eis o produto final, fruto de uma epifania, um momento, e algumas divagações."

Contos finalistas do Concurso de Contos #Ficçomos100kWhere stories live. Discover now