Fé cega, faca amolada

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- Tom?

A voz conhecida vinha da sala. Ele sabia de quem era mesmo antes de ouvi-la. A chave rodando na fechadura tinha sido a indicação, pois somente uma pessoa poderia ter feito isso sem ativar os feitiços de alarme e defesa. Terminou de enxugar a cabeça e pensou em se vestir, mas resolveu não se dar ao trabalho. Carlos o conhecia desde criança, já o vira em estado muito pior do que de toalha.

- Estou aqui no quarto.

Saiu e encontrou o homem alto sentado no sofá de dois lugares, ocupando-o como se fosse uma poltrona. Carlos era musculoso devido ao treinamento dos neo-templários, e mantinha os cabelos e barba negros bem aparados. Estava de uniforme, calça cargo e blusa de malha justas pretas, jaqueta prateada e botas reluzentes. O rosto moreno fechado de preocupação ajudava a compor uma figura quase sombria.

- Tudo bem? Não é que eu não adore a sua visita, mas estamos no meio da tarde e alguém pode ter visto você...

- Eles te descobriram, Tom. A ordem de caça está na mesa do Bispo-Comandante.

As pernas do mago falharam e ele sentou na poltrona marrom em frente ao amigo.

- Quanto tempo eu tenho? Quando eles vão vir atrás de mim?

- Mauro falou que amanhã mesmo ele vai separar uma equipe. Com o tumulto na Catedral no último fim de semana, a Ordem está doida para se redimir com a mídia.

Os olhos castanhos do caçador de magos encararam os de Tom por alguns poucos instantes.

- Você vai estar na equipe?

- Não. Mauro acha que eu estou comprometido por causa da sua amizade com Elisabete.

Uma onda de alívio percorreu Tom, que deu um suspiro. Ter que se tornar um fugitivo seria ruim o bastante, sem ter que se preocupar em enfrentar alguém tão querido para se defender.

- Obrigado por tudo. Você tem sido um amigo melhor do que eu mereço.

Carlos levantou e foi até ele. Tom abaixou os olhos, intimidado pela proximidade, mas o soldado levantou seu queixo e o fez encará-lo.

- Amigo, Tom? É assim que você me vê?

Tom se irritou com condescendência que ouviu na voz dele.

- Você sabe que não. E faz muito tempo que ri de mim por causa disso, não é? Afinal, é mesmo ridículo um mago apóstata se apaixonar por um caçador...

Antes que continuasse, foi interrompido pela boca de Carlos na sua. Lábios ásperos que escondiam uma língua macia, que invadiu sua boca sem pedir, explorando cada canto e fazendo uma corrente elétrica percorresse seu corpo. O choque inicial passou e Tom correspondeu ao beijo com a mesma fúria. Quando finalmente ficaram sem folego, separaram-se, olhos fixos um no outro.

- Você é muito mais para mim do que um mago apóstata, Tom. Desejo você desde que o vi com Bete.

- Eu... Pensei que você não gostasse... 

- Você pensou por tempo demais, Tom. Chega.

E o beijou novamente, dessa vez puxando o corpo esguio para os seus braços fortes. Tom, mais seguro de si, reagiu, jogando a jaqueta de Carlos no chão. Sua toalha caiu no chão, deixando-o nu, sentindo o tecido roçar em sua pele. Depois, talvez até tivessem tempo para discutir ou para delicadezas. Agora, precisava possui-lo para aplacar tantos anos de frustração.

Na madrugada, Tom acordou sozinho. O quarto estava na semipenumbra típica da noite do centro de uma grande cidade e seu corpo todo doía. Olhou ao redor, mas sabia que Carlos já tinha partido, consciente de que ele deveria sair cedo.

Sua vida era realmente irônica. Ele entrou no banho pensando em quantas vezes tinha se tocado pensando em Carlos, para finalmente tê-lo em sua cama na véspera de se tornar oficialmente um fugitivo. Teria que deixar tudo para trás, não só Carlos, mas seu apartamento, suas coisas, seus amigos. Sua vida tinha terminado para que outra começasse. Seria difícil, mas sobreviveria. Estava sobrevivendo há 15 anos.

Saiu do banho. A mochila de fuga estava pronta, com duas mudas de roupas, alguns artefatos mágicos e uma caixa que ele tinha trazido com ele da casa dos pais. Evitou a tentação de abri-la, pois não tinha tempo para memorias de uma infância que não tinha pertencido a ele.

Foi até a janela e ficou satisfeito ao ver a chuva fina. Colocou a calça jeans preta e uma blusa de malha branca. O sobretudo cheio de bolsos já estava pronto em cima da cadeira, devidamente equipado. Olhou-se no espelho e ficou satisfeito. O rosto bem barbeado não era tão bonito nem tão feio que chamasse atenção. Não era alto o bastante para se destacar em uma multidão e o cabelo preso ajudaria no disfarce.

Vestiu o sobretudo, colocou a mochila nas costas e encantou o seu cajado para parecer um guarda-chuva. Sempre soubera que o dia de fugir chegaria e achava que estaria pronto. Seu engano estava claro na ardência dos olhos e no nó na garganta que sentia. Desesperançado, virou de costas e saiu. Não se preocupou em trancar a porta, afinal os homens do Templo iriam derrubá-la de qualquer forma.

Ao contrario do que a maioria dos humanos pensa, magos não tinham uma sociedade secreta que os acolhia quando decidiam fugir da Ordem e seus templos. Havia rumores aqui e ali de entradas para o Submundo, lugar em que seres encantados tinham construído uma sociedade paralela que acolhia esses fugitivos - pelo preço certo. Tom ouvira esses boatos, claro. Mas eram sempre tão fora da realidade que ele sequer dera atenção.

Sua única opção era recorrer a uma figura conhecida de todos os envolvidos com magia, apóstatas ou não. Era chamada de Dama Cristina e tinha sido a grande defensora dos magos quando surgira a primeira legislação de controle. Aposentada precocemente, ela agora dirigia uma casa de lanches no coração de Icaraí. Decidido, Tom pegou um ônibus. A madrugada já começava a dar lugar a manhã, mas mesmo assim as ruas e os coletivos estavam vazios. Aproveitou o momento para tentar arrumar a cabeça. Não pensar, mas organizar.

A eterna fase de transição que vivera desde os dezesseis anos, quando sua magia finalmente aparecera, tinha terminado. Pelo menos tinha vivido tranquilo durante duas décadas, seus pais já tinham morrido e não havia pontas soltas.

A não ser os dois irmãos a quem amava.

Bete estava no Círculo, já que aceitara as regras do Templo e submetera a sua magia e seu corpo ao domínio neo-templário. Não a via desde que fora nomeada Arcana-Mor do Templo de Niterói e sabia que jamais a veria novamente. E isso doía ainda, pois a menina de pele morena e cabelos cacheados tinha sido seu primeiro amor. Só tinha amado uma pessoa tanto quanto a amava.

E finalmente chorou pensando na primeira e única noite com Carlos.

Fé cega, faca amoladaWhere stories live. Discover now