Perto demais de Deus (2)

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 - Você fede a magia.

Carlos controlou-se ao ouvir a voz, carregada de ira e sotaque, atravessar a sala.

- Desculpe, senhor. Não entendi – manteve a expressão vazia de quando estava em posição de sentido, sendo examinado por alguma autoridade eclesiástica. Não estava longe do que estava acontecendo, já que o agente especial Fenrir estava acima dele na hierarquia.

- Ah, você sabe do que estou falando. Seu capitão pode achar que é simplesmente o resquício da magia de sua irmã. Só que é forte demais. Me diga, soldado, quando foi a última vez que você viu Elisabete?

Aliviado por não precisar mentir e ao mesmo tempo manter em segredo seu encontro com Tom, respondeu, o tom mais respeitoso que conseguiu.

- Visitei minha irmã ontem, senhor. Foi aniversário dela ontem.

Betas só podiam receber visitas três vezes por ano; no Natal, na Páscoa e no seu aniversário. Fora naquela visita que Bete tinha lhe avisado sobre a ameaça à Tom. E por causa do abraço que trocaram, podia justificar a aura que o cobria e o fazia rescender a magia que o simbionte estava sentindo.

- Irei conferir essa informação, soldado. Espero que sua irmã não tenha que ser punida.

Ele não respondeu. Não iria responder à provocação pois sabia que teriam consequências. O silêncio se estendeu por alguns instantes incômodos, até que Fenrir deu um sorriso absolutamente animalesco.

- Muito bem, soldado. Já vi que está me levando a sério. Acho isso recomendável. Podemos começar a trabalhar – jogou uma pasta em cima da ampla mesa no centro da sala. – Veja esse dossiê.

Ele abriu a pasta em silêncio. Eram fotos de um homem louro de olhos azuis, em diversos locais do Rio e Niterói. Em algumas, estava acompanhado, sempre do mesmo grupo de três pessoas: uma jovem loura e baixinha, mais para gorda que magra, de olhos castanhos, uma mulata exuberante, sempre bem vestida com roupas coloridas e elegantes, e um rapaz forte, de olhos verdes, barba por fazer. Em outras estava em uma clínica, os rostos dos pacientes cobertos por filtros de imagens.

- Esse é Hugin Nerion, mago apostata foragido do Círculo de Seattle. Um dos elementos mais perigosos da Resistência Mágica Mundial.

Ele não precisou completar.

- Ele explodiu a catedral de Niterói?

- É o que suspeitamos. Ele se disfarça como curandeiro e consegue se aproximar das pessoas. Esses dois – apontou a mulata e o rapaz. – são apenas acessórios, amigos inocentes que ele fez aqui no Brasil, mas que não tem necessariamente ligação com suas atividades criminosas. Porém, esta aqui é perigosa, pois é uma jornalista formadora de opinião e que costuma defender os direitos dos magos.

- Mariana Falcão, do blog Pragmatismo Magico-político.

- Exatamente.

Carlos olhou a foto em que ela aparecia de frente por mais algum tempo.

- Engraçado, ela nos ataca tanto, nos odeia tanto... pensei que fosse maior, mais forte, mais poderosa.

- Talvez ela seja ainda mais perigosa por causa dessa aparência inocente. É uma das vozes mais respeitadas da oposição à Ordem, e é considerada uma opinião isenta por não ter nenhum envolvimento pessoal com magos além de ser amiga de alguns. Associou-se a Dama Cristina para lutar contra a Intervenção, mas nunca suspeitamos que pudesse se envolver com algo tão violento.

Carlos refletiu por alguns instantes. Assim como todos os neotemplários, Lia as colunas de Mariana Falcão. Alguns o faziam para conhecer melhor o inimigo, outros, como ele, liam por concordar com muitas coisas do que ela dizia. Ele tinha se voluntariado por achar que poderia ajudar a irmã, estando por perto se ela precisasse. Mas achava certas ações dá Ordem exageradas e excessivas, até mesmo violentas, ditatoriais. No fundo, acreditava mesmo que as pessoas merecem liberdade e oportunidades iguais, e a Ordem cerceava os direitos dos magos com o controle que exercia. Obviamente em voz alta não disse nada disso. Nunca dizia.

- Será que ela sabia das ações do outro?

- Só saberemos quando a interrogamos. Iremos até o apartamento dela ainda hoje com uma ordem de Restrição e Apreensão. Antes, vamos passar na clínica clandestina do mago e procurar alguma pista do paradeiro dele. Lá, vamos interrogar os vizinhos, vasculhar o terreno e quando acabarmos, iremos ao apartamento dela. Precisaremos ser sutis e agir com cuidado. Não quero alertar nenhum deles sobre nossas ações.

Sem esperar resposta ou reação, saiu da sala, deixando-o para trás por um momento. Mas Carlos sacudiu a cabeça e seguiu o estranho homem, sabendo que sua vida ficaria sensivelmente mais complicada nos próximos dias.

A clínica de Hugin também era no Fonseca, em uma rua que saia da São Januário, que por si só já era uma rua secundária, alimentadora da grande avenida que cortava o bairro. Carlos ficou admirado com a coragem do apostata em se esconder no mesmo bairro do quartel-general dos neotemplários. Claro que se esconder em um bairro cheio de magos, em uma pequena rua de uma área mais empobrecida era uma estratégia inteligente. Afinal, renegados e apostatas eram bem vistos pelos demais magos, que admiravam a sua resistência e dificilmente iriam entrega-los às autoridades.

Fenrir o deixou interrogando os vizinhos enquanto vasculhava o pequeno quintal de concreto da casa. O pretenso interrogatório não durou cinco minutos, pois todos diziam não ter visto nada, não saber de nada e desconhecer totalmente quem morava naquela casa. O senhorio dizia que ela estava vazia a anos, e que se alguém morava ali, era um invasor. Carlos conteve-se para não gritar com ninguém. Sabia a rotina, já estava esperando por isso, mas era frustrante mesmo assim.

Quando estava finalmente desistindo e pensando se haveria alguma forma de fazê-los falar, ouviu a voz de seu novo comandante.

- Venha até aqui, soldado.

Aliviado, atravessou o quintal. Fenrir estava em um canto, abrindo uma tampa de cimento de aparência pesada.

- Olhe isso aqui.

Se eles antes suspeitavam de Hugin, agora tinham certeza de seu envolvimento. Em um pequeno bunker – que fez Carlos se perguntar se o senhorio sabia da existência daquele buraco – haviam restos de explosivos, uma maquete da Catedral e vários materiais suspeitos.

- É, confirmamos o nosso terrorista. Agora...

Os olhos de Fenrir adquiriram o brilho dos de um predador que sente o cheiro de sangue da sua presa.

- Agora, precisamos encontrá-lo.

Fé cega, faca amoladaWhere stories live. Discover now