Os cegos do castelo

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A mochila batia nas costas dela enquanto trotava. Não podia correr, para não chamar mais atenção, porém não se continha em andar devagar. Resmungava entredentes enquanto desviava dos pedestres.

- Eu vou matar aquele gringo filho da puta, matar.

O gato na bolsa de transporte miou alto, bastante aborrecido com a viagem turbulenta. Não podia deixar Dom Quixote para trás, mesmo depois de tudo. Ele não tinha culpa da imbecilidade que Andrew tinha cometido.

O celular tocou e ela atendeu, usando o fone para deixar as mãos livres.

- Oi, Bela. Sim, já peguei tudo lá na Dra. Cecilia. Já encontrei um lugar para ficar. Sim, lá mesmo. Obrigada por tudo. É, vou descartar esse número e entro em contato quando tudo estiver resolvido. Agradeça ao Berthier por mim? Vocês foram uns amores, mas não quero colocar vocês em risco.

Esperou o sinal fechar em silêncio enquanto a mulher do outro lado da linha fazia o seu discurso.

- Não se preocupe, Bela. Se algum dia eu voltar a ver aquele imbecil, vou fazer ainda pior com ele. Garanto.

Atravessou a rua e os portões do parque. Como a hora do almoço se aproximava, a movimentação era intensa e ela precisou disfarçar o que estava fazendo. Esfregou o amuleto em seu pescoço, torcendo para que ele cumprisse a sua função, e entrou por trás do coreto.

A porta externa se abriu, deixando-a no vestíbulo onde seria recebida por alguém. Viu que duas pessoas chegavam.

- Cris? Cheguei. Você não sabe o que aconteceu... Você.

Ali, na sua frente, a razão de todo o seu infortúnio. Vestido de calça jeans e blusa preta, o rosto por barbear, olhos castanhos cercados por círculos escuros e o cabelo louro desalinhando. “E mesmo assim esse idiota ainda consegue estar lindo”.

- Oi, Mari.

Ela largou a mochila e o transporte do gato – que reclamou ruidosamente – e foi para cima do seu melhor amigo, atual ‘homem mais procurado’ do país e líder rebelde em construção.

- Andrew, seu canalha, seu cachorro, seu imbecil, cretino, filho da puta, idiota! – o homem do lado dele, um desconhecido, segurou uma risada, mas não sem que ela percebesse – Tá rindo de que, palhaço?

Voltou ao ataque.

- Você tem noção do que você fez? Os neotemplários estão atrás de mim! Por sua culpa! Você me traiu, seu apóstata filho da puta. – ela enfiou o dedo no peito dele, nitidamente controlando a vontade de partir para agressão.

- Mari, você fica linda nervosa... – sorriu, nervoso, tentando acalmá-la.

- Nem tente. – ela fechou ainda mais a cara. – E estou falando sério. Ainda bem que meus pais foram para Portugal antes de você explodir a Catedral!

- Ele explodiu a Catedral?

Novamente, o estranho interferia no que devia ser a completa aniquilação do maior problema que Mariana Falcão já tivera na vida.

- Ok, quem é o encosto?

Andrew fez questão de apresentá-los, tentando desviar o foco da conversa.

- Mari, este é Tom, um renegado. Tom...

- Mariana Falcão, a blogueira? Leio seu blog e acompanho todos os seus artigos, tudo o que você faz pelos magos!

- Acredite, meu bem, você não acompanhou nem a metade. Respondendo, sim, Andrew explodiu a Catedral. E por causa disso, a Ordem do Templo inteira está  caçando ele e qualquer um burro que seja o suficiente para se aliar a ele. Como eu!

- Mari, eu não queria...

- Você não queria o quê? Explodir a Catedral? Provocar os neotemplários?

- Colocar você em perigo. Mas eu tinha que fazer isso.

- Andrew... – a mulher colocou a mão na testa, afastando o cabelo castanho e rebelde do rosto. – Eu juro que você às vezes parece possuído.

Dama Cristina apareceu naquele momento.

- Mari, você chegou. Bela avisou que você estava vindo, mas não tive tempo de preparar os ânimos.

As duas mulheres se abraçaram. Naquele momento, Zé reapareceu pela porta externa. Ao ver a cena, recolheu a mochila e o transporte, para alívio do gato.

- Tudo bem, Cris, eu devia ter imaginado que ele viria para cá.

Andrew, ignorando o tom ácido do comentário, foi até onde Zé estava e abriu o transporte, pegando o gato no colo. Dom Quixote era um felino magnífico, de pelos azuis com a barriga e a cara brancas. Ele estava bem irritado pela brusquidão do transporte e de sua chegada, mas ao ver Andrew acalmou-se e começou a ronronar.

- Você o trouxe!

- É claro! Como eu poderia deixá-lo para trás? Nunca que um templário ia matar o gato mais lindo do mundo – e por um momento, os olhos dela amorteceram a raiva.

Tom perguntou.

- Eles matam gatos?

- Rapaz, você é noob mesmo, viu? Sim, matam. Segundo a Ordem, gatos podem ser familiares de magos, serem comandados a distância com poderes mentais e etc...

- Na verdade, gatos gostam de nós porque cheiramos bem.

- Nem sempre, gringo fedido. – ela voltou a olhá-lo com muita raiva. Zé percebeu a tensão e, sorrindo ao saber do problema em que Andrew estava metido, resolveu que era hora de sair dali.

- Mariana, vou levar sua mochila para o quarto. O transporte do gato, deixo com você?

- Não, Zé, ele vai ficar com o Andrew. Obrigada por tudo.

O lobisomem abraçou-a.

- Bem-vinda. Vamos cuidar de você.

Ela retribuiu o abraço, sorrindo. Dama Cristina arrastou Tom dali, dizendo que estava na hora de ele ajudar a fazer o almoço, deixando Mariana a sós com Andrew.

- Mari...

- Me deixa, Andrew. Não quero nem ouvir.

- Escuta, por favor. Só um pouco. Eu realmente não queria ter te envolvido nisso. Nem Bela ou Berthier, aliás. Vocês são meus amigos, as únicas pessoas no mundo que se importam comigo... são a minha família. Mas eu tinha que fazer o que fiz, a Catedral tinha que ser destruída.

Ela se deixou cair num sofá velho e colocou as mãos na cabeça.

- Não quero nem saber por que, Andrew. Você está obcecado com essa história de libertação dos magos e destruição da Ordem. Eu sei disso, sei desde que te conheci e mesmo assim te ajudei. – com voz embargada, ela levantou os olhos e o encarou. – O que eu realmente queria entender é porque você não falou comigo, não me avisou, não me perguntou o que eu achava. Você sabe o que eu senti quando vi o noticiário? Quando juntei as peças e entendi o que você estava fazendo nesses últimos seis meses? Eu achei que você... tinha morrido.

Ela quase não conseguiu terminar, a voz sumindo na dor lembrada. A expressão dele também refletiu dor e mágoa, e talvez, só talvez, ternura.

- Quando a Bela me avisou que você tinha sobrevivido e que a Ordem estava nos procurando, eu não sabia se ria ou chorava. Você traiu a minha confiança!

- Mari, eu vou passar o resto da minha vida lamentando ter te magoado. Mas eu não podia te tornar um alvo ainda maior. Não queria que os neotemplários achassem que você estava envolvida.

- Bem, eles acham. E agora, sou tão fugitiva quanto você.

Ele se aproximou e ficou agachado na frente dela, olhos nos olhos.

- Juro para você, Mari, que morro antes de deixar qualquer coisa te acontecer.

- Eu não quero que você morra, Andrew. Eu só quero...

Nesse momento, Zé voltou.

- Mari, Andrew, vocês precisam ver isso...

Fé cega, faca amoladaWhere stories live. Discover now