Perto demais de Deus

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 O dia geralmente começava cedo para os neotemplários, mas naquele dia Carlos foi obrigado a madrugar ainda mais. Recebera um chamado urgente às quatro da manhã, sendo convocado para uma reunião. O email que chegar pouco depois explicava mais um pouco da situação. No jeito lacônico do capitão Mauro, vinha explicando que as investigações sobre a explosão prosseguiam, mas sem envolver os neotemplários: a Ordem tinha decidido que ia mandar investigadores.

Isso deixara Carlos desconfortável e preocupado. Afinal, um mago renegado e desconhecido tinha agido embaixo do nariz de todos, destruído o centro da Ordem no Brasil e sem que eles sequer suspeitassem. A Rebelião, o movimento clandestino dos magos apóstatas, já tinha negado qualquer envolvimento com o ato. Andavam quietos nos últimos dias, provavelmente esperando qual seria a resposta oficial da Igreja e seus associados.

Pelo menos, a reunião seria na Torre e ele só precisava atravessar o jardim do Fonseca para isso. Com a Catedral destruída, todos os assuntos oficiais da Ordem Sagrada do Templo de Nova Jerusalém tinham sido transferidos para a Torre de Niterói, que ficava perto do edifício que servia de caserna para os neotemplários. Deu uma olhada no seu apartamento individual, que conseguira por causa do seu posto e ficou mais tranquilo. Nada ali indicava que tivesse passado parte da noite fora de casa.

O dia ainda estava longe enquanto atravessava o jardim silencioso. Já dentro da torre, cumprimentou os dois guardas de vigia e apresentou-se para identificação. Antes, bastava a aprovação visual de quem estivesse na recepção para entrar, mas isso havia mudado. Depois de conferir digitais e retina, a recepcionista abriu o portão. Ele a cumprimentou, tendo como resposta um mero aceno de cabeça. A marca na testa indicava que ela tinha sido Neutralizada, o que aumentou sua preocupação. Geralmente, os serviços na Torre eram prestados por magos registrados, que não moravam lá, mas no entorno. Já os Neutralizados eram magos que tinham sido condenados a passar pelo processo de retirada da capacidade de manipular forças mágicas, tornando-os praticamente autômatos, sem emoções e programados para receber ordens sem questioná-las. Moravam na Torre e eram insubornáveis. A situação deveria estar ainda pior do que ele pensara.

O elevador panorâmico subiu devagar, parando em vários dos andares, levando magos e seus seguranças. Antes, só os magos designados como Alfas precisavam de seguranças na Torre. Hoje, até mesmo um simples Gama estava escoltado e não viu nenhum Alfa circulando. A tensão o incomodava muito e ele preferiu olhar a paisagem. O horto se estendia embaixo do gigantesco edifício e ele podia ver as casas do bairro se espalhando. Os moradores do Fonseca eram, na sua maioria, magos registrados. Não era um gueto, pois não tinha acontecido por uma determinação oficial ou coisa assim, mas havia uma certa segregação. Magos dificilmente conseguiam alugar ou comprar imóveis em outros bairros, já que as imobiliárias faziam checagem de antecedentes. Ali, estavam perto da Torre, onde precisavam se apresentar mensalmente, e da escola de magos, onde as crianças registradas aprendiam a controlar seus poderes e a serem controladas pela Ordem.

Era um mundo estranho, esse. Às vezes, questionava sua escolha de vida. Mas tinha sido uma forma de ficar com a irmã, trancafiada na Torre quando seus poderes elementais a classificaram como uma Beta, e de proteger Tom. Respirou fundo para não se afogar na lembrança da noite anterior. Tanto tempo com medo, escondendo suas emoções por não querer acabar com a amizade entre eles, para descobrir que era correspondido justo quando o amigo estava prestes a ser trancafiado.

Pelo menos, ele estava livre.

Desceu do elevador no 25º andar, o último antes da área de habitação dos magos. Mauro estava na frente da sala de reunião e acenou para ele.

- Carlos, depois da reunião quero que você fique. Preciso lhe passar as novas ordens.

Um medo frio tomou conta do coração do neotemplário. Se fosse uma simples questão de resolver suas novas ordens, enquanto o resto da equipe ia caçar magos renegados, Mauro falaria na frente dos demais. Algo estava muito errado e ele esperava que não envolvesse Bete. Ou Tom.

Passou a reunião sem ouvir direito o que estava sendo dito. Apesar da convocação urgente, era um encontro padrão, que acontecia sempre que um imprevisto modificava as ações rotineiras da equipe – ou seja, era algo que acontecia com certa regularidade. Instruções dadas, grupos divididos e alvos designados, só então Carlos permitiu-se relaxar um pouco. O nome de Tom não aparecera na lista, o que significava que por enquanto estava a salvo.

Mas ainda não tinha acabado para ele. Esperou em silêncio enquanto os colegas se retiravam da sala, um ou outro levantando os olhos para encará-lo. Todos eram bem treinados demais para questionar ou investigar, porém sabiam que Carlos não estava ficando para trás a toa, e que o que quer que fosse acontecer, teria relação com o fato de ele não ter sido colocado em nenhum dos grupos.

Respondeu com um ligeiro aceno de cabeça, fingindo despreocupação, e finalmente ficou a sós com o capitão. Mauro estava com o uniforme padrão, calça-blusa-bota pretas, sem o colete refletor ou os aparatos de defesa. O rosto o encarava sério, a expressão ainda mais dura por causa da falta de sobrancelhas. O capitão da sua esquadra era totalmente careca e sem nenhum pelo visível no corpo. Havia muita especulação nos corredores sobre as causas, porém ele sempre dava uma resposta diferente. Quando Carlos, ainda um novato, perguntara, ouvira que fora por causa de uma mordida de cascavel.

Era esse o Mauro com quem estava acostumado, descontraído e disponível para fazer piadas com seus subalternos. A cara fechada lhe era estranha.

- Mauro... capitão, aconteceu algo errado?

- Não, Carlos, não aconteceu nada. Mas o comando da Ordem pediu que separássemos um neotemplário para uma missão especial e escolheram você pelo seu perfil – antes que o jovem o interrompesse, Mauro levantou a mão e continuou. – Quero deixar claro que fui contra. Conheço você, sei da sua história e de que você não tem culpa de ser irmão de uma Beta ou amigo de um renegado. Só que estava além da minha alçada.

Carlos sentiu o peso da mão do capitão no ombro direito e se virou para encará-lo diretamente nos olhos negros.

- Toma cuidado, Carlos. Você sabe que a Ordem não mede esforços e muitas vezes não se importa com quem pisa para resolver as coisas. Você é um cara bom, leal e dedicado. Cuidado.

Ficou ainda mais preocupado com a advertência de Mauro, que depois disso virou-se de costas para ele e foi até a parede oposta. Apertou um botão e um painel apareceu, onde ele digitou uma senha. Carlos acompanhou a manobra em um silêncio apreensivo.

Onde havia a parede, surgiu uma porta que o capitão abriu, fazendo um gesto com a mão para que Carlos o seguisse. Do outro lado, uma sala similar a outra, apenas em escala menor, os esperava. Na ponta oposta da mesa, havia alguém sentado. Como o sol ainda estava nascendo e a luz estava desligada, Carlos não conseguia ver quem era. Mauro fez sinal para que ele sentasse e foi até o interruptor.

- Recebemos um reforço especial do Vaticano, Carlos. Você irá participar da busca pelo terrorista que explodiu a Catedral – com um clique, a luz branca invadiu a sala. – Conheça o Agente Especial Fenrir, que vai o acompanhar.

O estranho levantou-se. Era um homem alto, com cabelos cinza – não o grisalho de alguém maduro, mas o cinza-chumbo de um dia nublado – e pele morena. Tatuagens azuis claras cobriam o seu rosto, os seus braços e o pescoço, em padrões que davam a impressão de que prosseguiam pelo peito e pernas, cobertos pelo mesmo uniforme padrão que Carlos e Mauro usavam.

Incapaz de esconder seu espanto, Carlos mal conseguiu cumprimentá-lo.

- Prazer... em conhecê-lo, senhor.

Ele retribuiu com um sorriso feroz, de dentes aguçados.

- Espantado, soldado? Eu sou um Simbionte. Essas marcas no meu corpo foram colocadas com magia...

Aquilo era proibido por convenções, tratados e leis em todo o mundo. Carlos estremeceu e ouviu Mauro sussurrar atrás dele

- Avisei que a Ordem estaria disposta a tudo. Se cuida.

O próximo som a quebrar o silêncio foi o da porta se fechando quando o capitão saiu. 

Fé cega, faca amoladaWhere stories live. Discover now