Versos perdidos

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Quando ele acordou, chegou a achar que teria sido melhor ter morrido. O corpo doía, a cabeça doía, os olhos doíam, respirar doía, pensar então... Mas era hora de ver como estava o mundo depois do seu grande ato de loucura. E aguentar as consequências.

Arrastou-se até o banheiro e olhou seu reflexo. Definitivamente, precisava de um banho. E fazer a barba. E escovar os dentes. Trocar de roupa também não faria mal nenhum.

Embaixo da água quente, colocou os pensamentos em ordem. Tinha ficado inconsciente por quatro dias, de acordo com o calendário do seu computador, resultado de explodir vinte bombas a dez quilômetros de distância usando um gatilho mágico. Não tinha deixado muitas pistas, porém era de esperar que a Ordem já tivesse pelo menos uma leve suspeita de quem seria o responsável. Talvez já tivessem encontrado o seu esconderijo na clínica. Talvez estivessem prestes a bater na porta do apartamento. E talvez tivessem ido atrás de seus poucos amigos...

Antes de começar a se afogar em auto piedade e água quente, desligou o chuveiro e voltou a se olhar no espelho. Achou melhor não se barbear, talvez fosse melhor estrear um novo visual para ajudar a confundir a Ordem. Colocou a primeira blusa que achou, uma blusa preta sem estampa, e sua calça jeans preferida. Calçou o coturno e já deixou o sobretudo separado. O clima parecia mais incerto que o seu futuro.

Foi até a cozinha, preparar alguma refeição congelada. No celular, milagrosamente com um traço de bateria, várias mensagens na caixa postal. Para não ouvir gritos, preferiu conferir as mensagens de texto e lá estavam mais cinco torpedos. Um de Bela, outro de Berthier e três da Mariana. Só leu o último.

Kd vc? Diz q n foi vc, sei q n. Pfvr responda.

“Ela vai me matar... Se souber com certeza o que eu fiz, nunca vai me perdoar.”

Resignou-se, pois não tinha o que fazer. Ele sabia do risco quando começou a planejar o ataque. Tinha que respirar fundo e ir em frente. Era o jeito. Só esperava que ela cuidasse de Dom Quixote para ele, apesar de tudo. Encostou na pia da cozinha, esperando a lasanha esquentar no micro-ondas. Iria procurar refugio com a Dama Cristina e depois ver se conseguia levantar os renegados e os apóstatas, aproveitando a onda de revolta que deveria estar se seguindo à explosão. E talvez mandar uma mensagem para os amigos, pedindo desculpas, dizendo que estava tudo bem. Precisava pelo menos desse último contato, principalmente com Mari, que sempre o acolhera...

Seus pensamentos dramáticos foram interrompidos por dois ruídos diferentes.

Primeiro, o apito indicando que o tempo de preparo da comida tinha terminado. E ao fundo, ouviu uma chave girando na porta.

- Andy?

- Bela? Tô na cozinha.

Ele ouviu os passos apressados antes de ser envolvido em um abraço apertado. Isabela era uma mulher superlativa: alta, corpulenta, perfumada, quente, roupas coloridas e justas, não tinha como não chamar atenção. Além de sexy, era divertida, atenciosa e compreensiva. Isso explicava porque, depois de tê-lo soltado do abraço, não ter brigado ou feito escândalo. Simplesmente o encarou, preocupação nos olhos verdes.

- Andy, você tá péssimo. O que aconteceu? A Mari tá surtando atrás de você, mas tá com medo de vir aqui para não chamar atenção... Ela foi pro jornal, me pediu pra pegar as coisas dela e o gato, porque ia precisar sumir por uns tempos. Juro que vim sem muitas esperanças de te encontrar, que os neo-templários tinham te pego no expurgo depois da explosão... Acabei de sair do apartamento dela, dois oficiais da Ordem foram lá procurar...

- Bela...

A morena parou de falar por alguns minutos e o encarou. Pela expressão no rosto dela, seus piores temores tinham se concretizado.

- Foi você, né, Andy? Merda. Por isso a Mari tá tão louca. Você tem ideia do que aconteceu nos últimos quatro dias, seu doido?

- Não... eu acabei de acordar. A magia me esgotou demais e precisei descansar.

Ela não falou mais nada. Foi para a sala e ligou a tevê, no canal de notícias. Um jornalista entrevistava um sociólogo especializado na Ordem e nos conflitos entre magos e religiosos.

“- Então, doutor Silva, o que podemos esperar agora?

- Bem, a Ordem está reagindo da forma esperada. Irão endurecer o controle sobre os magos registrados, alguns irão perder a licença para viver fora dos Círculos. A caça aos renegados e aos apóstatas se tornará uma prioridade. E isso irá gerar reações dos fora-da-lei que será reprimida com força...”

Ele comia em silêncio enquanto via as imagens. Bairros de magos registrados sendo praticamente expurgados, prisões arbitrárias e um conflito quando dois magos renegados foram encontrados. Dois magos mal treinados contra um esquadrão de doze neotemplários. A cena havia sido editada para passar na tevê e mesmo assim a crueza do tratamento dispensado aos renegados lhe deu um calafrio de raiva. Raiva era um sentimento melhor do que sentir pena de si mesmo, então aceitou essa indignação de braços abertos.

Sua amiga parecia mais inconformada.

- Tá vendo isso? Desde a explosão da catedral que a tevê fica mostrando essas capturas. Vários magos já morreram e...

- Bela, isso já acontecia antes. A Ordem matava magos todos os dias. Só que agora a televisão mostra.

- Andy, você pode ter começado uma guerra!

- Eu sei.

- Argh, você é pior que a Mari quando quer... E agora?

Ele pousou o recipiente em cima da mesa e abriu a lata de coca cola. O açúcar percorreu seu corpo como bálsamo.

- Agora a gente luta, morena. Vem, me dá uma carona. Vou só fazer a minha mala.

Fé cega, faca amoladaOnde as histórias ganham vida. Descobre agora