Versos perdidos 3

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Os quartos no Refúgio eram todos iguais. Camas de solteiro confortáveis, armários de três portas, uma mesa de trabalho e um pequeno lavabo anexo. Uma vez, Zé disse que tinham quartos de casal, mas era óbvio que ele não iria ficar em um. Fazia muito tempo desde que precisara de um quarto de casal. Por alguns segundos, lembrou dos dois meses que demorou viajando escondido até chegar ao Brasil, um caminho tortuoso, cheio de motéis baratos e companhias fugazes. Algumas mulheres, alguns homens, todos dispostos a ajudá-lo na fuga e a dar-lhe um pouco de conforto.

Mas desde que chegara ao Brasil, virara um monge – o que não deixava de ser irônico. Sequer beijara alguém. Tá, Bela o arrastara para uma boate com Bert e Mari por algumas vezes, mas só ficou bebendo e conversando com a jornalista que parecia tão deslocada quanto ele. Foram bons momentos, apesar do barulho.

Aliás, se parasse para pensar nos últimos anos, os únicos bons momentos fora do trabalho na clínica tinham a presença da Mariana. E como se parasse para pensar nisso, poderia se arrepender, dedicou-se a desmanchar a mala e trocar a calça jeans rasgada. Tudo pronto, foi atrás de sua anfitriã.

Encontrou-a na cozinha e, apesar de ainda estar cheio da lasanha, decidiu ajudá-la com o almoço. Além dele, só havia mais um renegado em refúgio. Zé voltara para a lanchonete, visivelmente contrariado em estar no mesmo ambiente que Andrew.

- E agora, Andy, o que você pretende fazer da sua vida?

Ele suspirou e deu de ombros. Abriu a ampla geladeira, tirou uma garrafa de refrigerante e se serviu de um copo bem cheio, quase meio litro do líquido açucarado. A luta contra o lobisomem, apesar de breve, consumira muita energia que ele precisava repor.

- Continuar fugindo da Ordem, isso não é novidade, Eu sei que a luta continua, não sou ingênuo de achar que ia explodir a catedral e resolver todos os problemas dos magos. A Rebelião vai ter que tomar uma posição firme e eu vou obriga-los a isso. O próximo passo tem que ser a liberdade dos magos presos nas torres! Não tem como a opressão da Ordem continuar, Cris! Não somos ovelhas! – ele bateu o copo no balcão de mármore.

- Ei, calma. Estou do seu lado, mesmo achando que explodir a catedral tenha sido exagerado. Você se precipitou, Andrew. A Rebelião estava caminhando para uma solução pacífica e você pode ter dado um passo atrás com isso.

- Achei que pudesse contar com você. – ele sentou pesadamente em uma das cadeiras de metal.

- Se não pudesse, não estaria aqui – ela passou os dedos de leve nos cabelos louros e embaraçados do mago. - Essa causa é tão minha quanto sua, não vou abandoná-la porque você cometeu um erro.

Sentiu o peso das palavras da mulher que o ajudara na louca fuga que fizera, sem querer nada em troca. Soube que tinha sido egoísta e impulsivo, que deveria ter pensado melhor nas consequências.

“Ainda não me acostumei a não estar mais sozinho tempo, mesmo depois de tanto tempo...”

O silêncio se estendeu até que Cristina o fez ir colocar a mesa.

Não havia uma sala de jantar, mas sim um refeitório coletivo. Naquele momento, só iriam usar uma mesa com quatro lugares – porque ele desconfiava de que o lobo estaria de volta para a refeição – e ele estava ajeitando os copos quando alguém entrou no recinto.

- Olá

- Oi, você é o mago que a Cristina falou, né? É um renegado que chegou hoje. - .- Andrew o analisou, rapidamente. Barbado, cabelos bem cortados e olhos castanhos. Um pouco magro demais para o seu gosto e parecia estar assustado.

- Sim, meu nome é Tom.

- Andrew – os dois apertaram as mãos. Tom ficou olhando curioso, e Andrew sentiu-se um pouco desconfortável. Continuou a colocar a mesa, sendo rapidamente auxiliado pelo outro homem.

- Você não é daqui, né? – ele olhava de relance para Andrew enquanto ajeitava os copos.

- Não, sou de Seattle, fugi do círculo de lá e estou aqui há quatro anos.

- E ainda tem esse sotaque horroroso? Tem coisas que nem no círculo ensinam, pelo visto.

Ele riu da tirada de Tom. O novato parecia estar levando aquela mudança de situação numa boa, mas antes que ele pudesse explicar mais, ouviu os alarmes do portão externo se abrir e um telefone tocar.

- Andrew, você pode ir lá para mim? Eu atendo o telefone. Fica tranquilo que quem chegou tem passe livre – gritou a voz de Cristina.

Acompanhado de Tom, foram até o mesmo vestíbulo onde ele quase foi destroçado por Zé. Demorou alguns segundos para sua mente registrar quem tinha acabado de chegar, e ele sorriu.

Ela usava um vestido preto de mangas curtas, que se moldava ao corpo sem apertar. Para alguns, ela estaria acima do peso. Para Andrew, ela era simplesmente perfeita, em todos os aspectos. Um legging preto que sumia em botas de cano franzido, a velha mochila verde no ombro e o transporte pink para gatos na mão esquerda. O cabelo castanho em desalinho, caía em ondas nos seus ombros e os olhos castanhos se arregalaram ao vê-lo ali.

- Cris? Cheguei. Você não sabe o que aconteceu... Você.

Andrew sabia que ela ia irromper em palavrões e xingamentos, mas não pôde evitar o sorriso ao finalmente revê-la.

- Oi, Mari.

Fé cega, faca amoladaWhere stories live. Discover now