Fé cega, faca amolada (2)

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Música ambiente quase inaudível o cercou assim que entrou na lanchonete. O jazz suave inundava a loja de duas portas, quase na frente do Campo Bento, lugar que servia de ponto neutro entre magos e neo-templários. Tom já tinha estado na feira dos fins de semana, onde magos devidamente registrados pelo Templo dividiam espaço com meros artesãos para vender seus produtos. Teoricamente, ele não poderia comprar nada ali, pois nos registros do Templo de Niterói não constava nenhum mago com o nome de Antônio Reis. Porém, os bolsos cheios do seu sobretudo atestavam que o controle não era tão grande quanto o Templo se gabava.

E ali acabava seu planejamento. Ir até ali era a única pista que tinha para encontrar ajuda; e mesmo essa pista tinha sido conseguida de forma torta, em sussurros e gestos. Era a hora de correr riscos então. Sentou numa das cadeiras que acompanhavam o comprido balcão, escolhendo um lugar bem no meio. Mesmo sendo cedo, já tinha movimento. A lanchonete abria cedo para acolher quem saia do turno da noite e quem pegava cedo no trabalho. Taxistas, porteiros, balconistas e vigilantes dividiam o espaço com quem estava indo para academia antes de ir trabalhar ou estudar.

Cacos e ecos de conversa flutuavam ao seu redor. A sua direita, um porteiro comentava com outro sobre o tumulto na portaria por causa da briga de um morador com a síndica. Do outro lado, a menina de top verde-limão e cabelos ruivos exagerados flertava abertamente com o balconista, que a ignorava. E Tom só percebeu isso porque o homem o encarava, mal humorado. Era baixo e pálido. Cabelo cortado rente, sobrancelhas negras unidas, barba feita,  mas que mesmo assim deixava uma sombra no rosto. Os braços estavam cobertos por uma blusa de manga comprida que usava por baixo do jaleco do uniforme e ele atendia a menina com gestos automáticos e respostas prontas.

- Já foi atendido?

A voz feminina era grave e o mago sobressaltou-se. Não tinha visto mais ninguém atrás do balcão e surpreendeu-se ao ver a dona do estabelecimento a sua frente. Esperava que a Dama fosse uma mulher de idade, mas foi saudado por um rosto jovem, com menos de quarenta anos, e olhos castanhos que o encaravam. O cabelo estava preso em uma rede preta, mas pareciam ser dourados.

- Não, ainda não. Eu queria um café com leite e um pão com manteiga.

- Eu faço, dona Cristina, pode deixar.

- Obrigada, Zé.

Tom pensou em dizer algo para conseguir manter a conversa com ela, mas não foi rápido o suficiente. O rapaz o atendeu com visível má vontade e ele achou melhor sequer arriscar perguntar qualquer coisa sobre o refúgio. Ia ter que esperar uma oportunidade de falar com ela.

Uma mesa ficou vaga e ele levou seu café para lá. No balcão, ia ficar muito claro que estava enrolando. Comeu devagar, esperou o café ficar gelado. A lanchonete esvaziou e a dama Cristina estava no caixa, enquanto o seu ajudante limpava as manchas de café no vidro de balcão. Era a sua chance.

- Queria pagar.

- Foi só o café e o pão?

- Sim... – estendeu a nota de dez reais e enquanto ela conferia o troco, tomou coragem. – E eu precisava de ajuda para encontrar... um lugar.

Ela parou, erguendo as sobrancelhas enquanto o encarava.

- O que você quer dizer com isso?

- Me disseram que a senhora podia me ajudar. Estou... fugindo...

Na mesma hora, ela fechou a gaveta do caixa e devolveu a nota.

- Se você não sair daqui em dez segundos, vou chamar a Polícia.

- Eu... - o balconista aproximou-se, pressentindo que havia algo de errado pelo tom de voz da chefe. Tom viu a dama pegar o telefone e soube que ela ia cumprir a ameaça. A nota agarrada na mão, saiu tropeçando da lanchonete.

Do lado de fora, a vida seguia o rumo normal de uma quarta-feira de manhã. O sol estava tímido, pessoas caminhavam apressadas, ônibus paravam no ponto a vinte metros dali. E Tom estava perdido, dessa vez de uma forma muito mais definitiva do que antes. Não podia andar a esmo, ou os neo-templários o pegariam. Não tinha mais família na cidade e os únicos amigos em quem confiava a sua vida eram servidores do Templo.

Parado ali, tentando descobrir uma direção, só despertou quando quase foi derrubado. Alguém esbarrou nele, correndo, sem sequer murmurar um pedido de desculpas.

- Ei, cuidado, pô! – por mero instinto de habitante urbano, colocou a mão no bolso. Daquela vez, o pio tinha acontecido. O desconhecido era realmente um assaltante e tinha levado sua carteira. Sem entender direito o porquê, começou a correr na direção em que vira-o sumir.

Sentia um misto de raiva, frustração e impotência enquanto corria. Atravessou a rua sem ver, deixando para trás buzinas e freios. O bandido entrara pelo portão de acesso do Campo, metendo-se na grande alameda que cortava o espaço, levando da rua até o Templo de Niterói, no outro extremo.

Ele continuou, vendo-o desviar das pessoas que caminhavam. Tom não diminuiu o passo nem tomou o mesmo cuidado e derrubou alguns velhinhos que faziam uma mistura de tai chi com ginástica laboral. Quando o assaltante sumiu atrás do velho coreto, ele acelerou ainda mais.

A porta da entrada de manutenção estava aberta e ele sequer hesitou. Uma raiva surda crescia no seu peito, uma indignação quase assassina. Porém, ali naquele ambiente mal iluminado, respirando uma mistura de mofo e poeira, caiu em si.

- Quem é você e o que fez comigo? – ele tinha estado sobre efeito de uma compulsão. Por isso a corrida desesperada e sem sentido. Não tinha nada na carteira de tão valioso, os documentos estavam na mochila, assim como o grosso do dinheiro. Lembrou da nota que ainda estava amassada em sua mão. Esticou-a e na penumbra pode ler ‘Siga o Coelho Azul’.

- O que isso quer dizer?

Deu um passo para trás, certo de que tinha caído em uma armadilha. Mas antes que conseguisse sair, um calor absurdo o envolveu. Era como se de repente tivesse um cobertor elétrico em cima do seu corpo. A quentura amoleceu seus músculos e sua vontade, as pálpebras começaram a fechar. Ainda lutou, deu três passos curto e sofridos na direção da porta, mas a escuridão finalmente tornou-se total.

Fé cega, faca amoladaWhere stories live. Discover now