Capítulo XVI

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David P.O.V.

O avião já há muito que levantara voo. Roma ficara para trás e agora só se conseguia ver o céu azul, e sob nós as nuvens. O meu irmão e Ava estavam estranhos desde que ambos entraram no quarto do hospital. Pareceu-me que existia uma certa tensão entre os dois, mas fui convencido de que era apenas impressão minha. Daniel evitava qualquer pergunta minha em relação ao assunto e Ava estava demasiado aérea. Eu estava genuinamente preocupado com ela, tinha medo que aquelas fotografias tivessem sido demasiado. Mesmo eu tinha ficado chocado com o que descobri.

Antes de passar para o outro lado da parede acreditava que haveria de encontrar um sítio húmido e escuro, provavelmente desocupado há quase um milénio. No entanto, estava errado, aquele espaço era moderno e acolhedor. Presos à parede estavam arquivos de metal pintados de azul petróleo, em cada gaveta estava assinalado um ano, contudo encontravam-se todas trancadas. Para além do mais, havia estantes com objetos com valor histórico, desde caixas e vasos até livros. No centro, estava uma grande mesa de madeira com cadeiras à volta onde repousavam vários arquivos.

Primeiramente, dirigi-me ao ficheiros que estava mais cheio. Ao abri-lo deparei-me com a fotografia de uma senhora que era idêntica a Ava apenas um pouco mais velha. Comecei a ler os documentos, mas concluí que demoraria demasiado tempo. Por isso, lembrei-me de tirar fotografias para rever tudo com mais detalhadamente futuramente. O segundo ficheiro tinha a imagem de Isaac, todavia nela o homem tinha um aspeto asseado e mais saudável. Contrariamente, o terceiro ficheiro pertencia a alguém que desconhecia, no entanto ilustrava um homem com mais de trinta anos. A seguir, vi os arquivos com menos espessura, neles estávamos nós os três. O arquivo de Ava era o que parecia estar mais completo e incluía fotografias anteriores à morte de Isaac, enquanto que o meu ficheiro e o do meu irmão eram mais recentes contudo não menos detalhados. O que aconteceu a seguir vocês recordam-se visto que foi assim que viemos parar a este avião. Só gostava de entender o que aconteceu eles os dois, já passamos por demasiadas coisas juntos para a nossa amizade acabar assim.

* ** *

O caderno que a rapariga comprara numa loja do aeroporto já ia quase a meio. Após ver as fotografias pouco ou nada dissera, mas isso não significava que tivesse menos vontade de discutir sobre o assunto ou pensar nele. Simplesmente havia coisas que não podia revelar e outras que uma vez ditas em voz alta perderiam o sentido que tinham dentro da sua cabeça. Ava gostaria de dizer que agora tudo era claro, todavia não era verdade. Consequentemente, as folhas do caderno iam sendo preenchidas uma a uma com teorias, memórias e pensamentos. Tudo lhe fluía melhor quando escrevia, as coisas tornavam-se mais claras e nenhum pensamento caía no esquecimento.

Para além do mais, Daniel insistia em ignorá-la. Não conseguia perceber ao certo se era por aquilo que ela tinha visto ou por a culpar do que aconteceu ao irmão. De uma maneira ou de outra precisava de resolver aquilo urgentemente. Subitamente a voz de uma hospedeira de bordo ouve-se:

- Caros passageiros, lamentamos mas o mau tempo impede-nos de chegar ao nosso destino em segurança. Não existe motivo para alarme, dentro de momentos iremos aterrar no Antwerp International Airport.

- Ava, respira fundo. Tens medo de voar?- mandou David.

- Não, é só que eu sabia que isto ia acontecer. A culpa é toda minha, fui eu que nos meti neste avião.

- Estás a falar do quê? Foi a tia Ellen que nos meteu aqui. Dentro de momentos vamos estar todos a salvo na Antuérpia, não entres em pânico. E se tu fosses chamar alguém em vez de ficar aí especado?- inquiriu David para o irmão.

Daniel levantou-se imediatamente e passado uns minutos apareceu com uma hospedeira. A rapariga começou a ficar menos nervosa, todavia só relaxou completamente quando aterraram. Uma vez no aeroporto, o trio foi buscar as malas, visto que seria necessário mudar de avião e sentaram-se. David saiu para descobrir quando iriam voltar a embarcar, deixando os restantes sozinhos. Os primeiros minutos foram passados em silêncio até que a rapariga ganhou coragem e disse:

- Eu sei que as coisas não estão bem entre nós e...

- Eu já disse que nós temos de falar sobre isso.- interrompeu Daniel de novo.

- Mas eu quero falar sobre isso e vou fazê-lo. Não vou ficar simplesmente calada e ver a nossa amizade acabar. Eu não quero saber se gostas de rapazes ou raparigas, porque para mim continuas a ser a mesma pessoa e não interfere nada com a nossa amizade. Apenas gostava que tivesses tido confiança em mim e que me tivesses contado. Já devias saber que para mim não é um problema.

- Não é que eu não tenha confiança em ti.- começou Daniel a responder após um bocado.- Isto não é algo que eu conte assim nem mais menos. Ainda sou muito novo não podes esperar que eu te diga com toda a naturalidade.

- Mais alguém sabe?

- Só o meu irmão, ele sabe sempre tudo. Por isso é que ele fez aquele comentário parvo quando te cortei o cabelo. David não é sempre assim e aceita-me como eu sou, é só que...

- É só que ele é teu irmão. Lamento aquilo que lhe aconteceu, eu nunca quis que ninguém se magoasse.

- Quando eu te disse aquelas coisas estava completamente alterado e não conseguia pensar claramente com o medo de perder David. É verdade que eu te culpava pelo que lhe aconteceu mas agora vejo que estava errado. Nós viemos para aqui por nossa conta e risco e não me arrependo de o ter feito. De alguma maneira nós estamos a fazer a diferença e o facto de pelo menos termos tentado já é ótimo. Só é pena que não tenhamos tido a possibilidade de fazer mais por Isaac.

- Na verdade ainda temos.- retorquiu David que tinha chegado a tempo de ouvir a última frase.- Disseram-me que o nosso avião só parte quando o mau tempo passar e as previsões dizem que isso pode demorar dias. Assim temos tempo suficiente para dar uma volta pela cidade se é que me entendem.

- Não, não entendo.- respondeu a rapariga.

- Então malta, não se lembram das fotos? No ficheiro de Isaac estava escrito que ele morava aqui. Estamos à espera do quê? Vamos procurar a morada do arquivo.

Ava olhou para Daniel e percebeu que ele estava de acordo. Decerto que eles não iriam desperdiçar mais nenhuma oportunidade.

* ** *

Antes de se mudar para Brighton, tinham dado um conselho muito precioso a Isaac: não cries uma rotina. Logo, o homem vagueava pela cidade em direções diferentes todos os dias. Só havia uma coisa que ele não conseguia mudar, a ida ao pub a seguir ao almoço. No início, ia a um estabelecimento diferente todos os dias, contudo tinha encontrado um sítio que considerava ter a melhor cerveja da cidade e passou a ir ali frequentemente. Com as voltas que a sua vida tinha dado não conseguia quebrar o vício durante muito tempo.

Apesar de ter noção dos perigos, foi com choque que viu o conteúdo do envelope que lhe fora entregue. No entanto, fazia sentido que ele não tivesse dado conta da presença dos seus velhos conhecidos. Não era a ele que as fotografias retratavam, era a Ava. Isaac entendia muito bem a ameaça subentendida, por isso levantou-se e dirigiu-se a casa, sem se quer tentar despistá-los. Naquela tarde a rapariga trabalhava na loja, logo não voltaria a casa tão cedo. O velho sabia perfeitamente o que tinha de fazer, proteger a ruiva era tão importante quanto proteger o seu segredo. No início, cuidar de Ava não passava de um favor que acedera à mãe dela, aquela mulher que fizera de tudo para o ajudar há tantos anos atrás. Todavia tinha-se tornado próximo dela contra a sua vontade. Olhou para trás, viu o homem com os olhos de gelo e pensou: «Raios, finalmente me apanhou. Mas não vai ter o que quer, nem que tenha de dar a minha vida para o assegurar.»

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