Capítulo 1

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À mesma hora de sempre o despertador tocou e a última coisa que Ema queria fazer era levantar-se da cama. Todos os dias era a mesma coisa: o despertador tocava, ela desligava-o, dez segundos depois a empregada, Miss Clara, ia acordá-la, ela levantava-se, tratava de si, ia tomar o pequeno-almoço e por aí adiante. No entanto, todos os dias havia um elemento que nunca faltava: os olhares e comentários de desprezo e repulsa que toda a gente lhe lançava por ainda não ter ganho os seus poderes. Cada dia que passava torna mais difícil aguentar tudo aquilo, especialmente naquele dia em específico.
Mas mais cedo ou mais tarde ela teria que se levantar e 5 segundos já tinham passado.

- Cinco, quatro, três, dois, um...

Com um estrondo, Miss Clara abriu a porta, e olhou para a figura da adolescente enrolada nos lençóis. Desta vez ela não lhe gritou ou lhe falou secamente, como se não a conhecesse. Desta vez, ela ficou a olhar para ela durante algum tempo, como se não soubesse o que dizer. Finalmente, ela decidiu-se e, com a voz mais doce que alguma vez Ema tinha ouvido, disse a mesma frase que dizia todos os dias:

- Menina, está na hora de se levantar. Eles estão à sua espera.

De seguida, a empregada saiu e fechou a porta rapidamente, como se não aguentasse estar ali nem mais um segundo.

Ema sentou-se na cama e ficou a olhar para a chuva que caía do outro lado da janela na parede ao seu lado. Era outra vez aquele dia do ano. O dia em que o desprezo diminuía, em que as pessoas a tratavam melhor, o único dia do ano em que ela não se tinha que preocupar com comentários maldosos ou olhares de ódio. E ela odiava-o. Aquele era o dia que ela mais odiava do ano inteiro: o aniversário da morte dos seus pais. Era verdade que grande parte daquele ódio e desprezo desaparecia, mas era substituído por algo muito pior: pena.

Ema odiava sentir que as pessoas tinham pena dela. Desde a morte dos seus pais que havia apenas três tipos de olhares que lhe dirigiam: desprezo, ódio e pena. Durante os dois anos em que ela ainda não se tinha que preocupar com os seus poderes e que os seus pais já não estavam presentes, toda a gente olhava para ela com uma pena sufocante. Era terrível. Quando ela fez 12 anos e os seus poderes não apareceram, foi quase um alívio passar a receber olhares de desprezo. Quase.

Para além disso havia a razão óbvia pela qual ela não gostava daquele dia: o facto de ser o aniversário do dia em que tinha perdido as únicas duas pessoas que a amavam e que realmente se preocupavam com ela.

Todos os dias ela sonhava com aquele dia. O dia em que o pai lhe disse que a ia levar a uma reunião dos representantes. Ela tinha ficado tão contente! Aquela cabana era um segredo que apenas os representantes sabiam e saber que o pai confiava nela o suficiente para partilhar aquele segredo com ela...era muito importante para Ema. A mãe dela também ia a todas as reuniões com o seu marido. Ela era a única pessoa que era permitida naquelas reuniões que não fosse um representante. Ela era conhecida pela sua inteligência, determinação e beleza, e já tinha salvo Woodshack de muitas situações críticas e por isso, era muito valiosa quando estava na altura de tomar decisões. Tendo em conta que era a próxima representante da família Eglington, Ema passaria a poder ir às reuniões (mesmo que só pudesse assistir) se provasse o seu valor naquela reunião. Isto se ela tivesse lá chegado. Quando aquele dia chegou ao fim não tinha provado nada e tinha perdido as duas pessoas mais importantes da sua vida.

Algum tempo mais tarde, depois de se arranjar e estar pronta para ir tomar o pequeno-almoço com "eles", como Miss Clara tinha dito, Ema saiu do quarto e começou a caminhar o mais devagar possível em direção à sala de refeições ou como ela gostava de lhe chamar "a sala de tortura".

O "eles" a que a Miss Clara se tinha referido eram os avós do lado do pai de Ema. Depois do acidente em que os seus pais tinham morrido os avós do lado do pai passaram a ser a única família de Ema, tendo em conta que os seus avós do lado da mãe tinham falecido muito tempo antes até de os seus pais se terem conhecido, e que ela não tinha irmãos, primos ou tios. As famílias fundadoras eram muito pequenas para que não houvesse demasiada gente com acesso àqueles poderes e assim reduzir a probabilidade destes caírem em mãos erradas (especialmente as famílias Eglington e Culbert por serem os mais poderosos). Assim, a família de Ema ficou reduzida aos seus avós do lado do pai: Eduardo Eglington e Erica Eglington.

Eles nunca tinham estado presentes na vida do seu filho (e muito menos na de Ema) desde que ele ocupara o lugar de representante da família e apenas se voltaram a mudar para a mansão Eglington quando ele e a sua mulher morreram e a sua neta ficou sem ninguém para tomar conta dela. Nesse campo nunca foram grande ajuda, deixavam o trabalho de tomar conta da neta para os empregados, contrataram um professor para lhe dar aulas e lhe explicar o trabalho de ser representante e nunca a apoiavam no que quer que fosse. Eram muito frios e tratavam-na como se fosse uma barata que eles quisessem que desaparecesse mas não podiam matar. Isto para não falar dos olhares de ódio e repulsa que lhe estavam constantemente a lançar. Todos os dias na "sala de tortura" eles faziam questão de lhe dizer que ela nunca seria capaz de ser a representante dos Eglington e que era uma aberração. Claro que isto tudo tinha uma explicação, pois ninguém trataria assim a própria neta. Na verdade, os avós de Ema acreditavam firmemente que tinha sido por culpa dela que os seus pais morreram. Ela não sabia porquê, mas durante um jantar em que Erica estava particularmente enervada, ela deixou escapar que se não fosse por Ema os seus pais podiam ainda estar vivos. E era isto que mais a entristecia, mais do que todo o desdém e ódio, era os avós acreditarem que era dela a culpa dos seus pais terem morrido. Mas isso não era o pior. O pior era não saber se eles tinham ou não razão.

A EscolhidaWhere stories live. Discover now