Primeiro Capítulo: No qual Renato e Virgínia se conhecem

233 10 17
                                    

PARTE I: AS FLORES NASCEM NOS LOCAIS MAIS INÓSPITOS

"Na cama está deitada a deusa, a soberana dos sonhos. Mas como é que ela veio aqui? Quem a trouxe, que poder mágico a instalou neste trono de fantasia e de volúpia?"

Baudelaire

Primeiro Capítulo:

No qual Renato e Virgínia se conhecem

Sexta-Feira, 27 de junho de 1975.
Dezoito dias antes.

As primeiras luzes da manhã atravessaram o tecido da cortina junto à janela da sala. Pequenos grãos de poeira, que estavam suspensos no ar do antigo apartamento, tornaram-se mais nítidos a cada instante. O ambiente permanecia num silêncio acolhedor, enquanto alguns suaves ruídos, vindos da rua ou de outras moradias, tocavam sutilmente uma harmonia imprecisa. Lá fora, uma espessa camada de neblina acariciou os vidros, tornando a visão dos prédios vizinhos um pouco obscura.

Seduzido por essas delicadas impressões matutinas, Renato sentiu-se extremamente só. Teve medo de ser enterrado vivo e apodrecer sozinho no apartamento onde morava - um caixão onde o haviam enclausurado para sempre e onde ninguém jamais o procuraria. Não queria ser mais um morto no noticiário. Pensou ver diante de si um carro preto distanciando-se no horizonte de uma rua. Acreditou estar em uma cidade muito fria, em que cristais brancos pousavam suavemente na terra e coisas mágicas eram possíveis.

Abriu os olhos lentamente e começou a despertar desses sonhos confusos. Ao mesmo tempo em que se certificava de que já estava acordado, tocando seu rosto com os próprios dedos, procurava também recordar do que havia supostamente sonhado, esticando os braços para cima, tentando tocar um rosto feminino que flutuava no ar. Parecia certo que estava com uma garota desconhecida, muito linda, em frente a degraus de escadaria. Algo fantástico havia acabado de acontecer, qualquer coisa semelhante a um milagre. O céu parecia estar desabando diante deles, escorrendo em sua própria loucura. Devaneios.

Riu de si mesmo. Percebeu estar sozinho e deitado. O teto que viu parecia um pouco manchado, provavelmente devido a umidade.

Mais um local para fazer arte, raciocinou.

Virou-se para o lado, ajeitando o cobertor que tinha sobre o corpo. Adormecer no estreito sofá já estava tornando-se corriqueiro. Costumava ter insônia nas horas mais escuras da madrugada. Ao raiar do dia tinha especial necessidade de dormir profundamente, sem vontade alguma de abrir os olhos. Porém estava reparando que, ultimamente, sua insônia prosseguia até mesmo durante o dia. Sentia-se um boneco preso a correntes invisíveis, suspensas nas mãos de um anjo mau, e parecia que nada poderia fazer para agir de acordo com sua própria natureza. Não compreendia ao certo quem escrevia sua história de vida, afinal: seu livre-arbítrio ou uma pena tirânica?

Após passar a madrugada fazendo desenhos com spray de tinta nas paredes do apartamento onde morava com o pai, Renato cochilou - talvez por uma hora, talvez mais - enquanto lia um de seus quadrinhos favoritos, o Ultra-Humano. Tratava-se de uma publicação clássica, sobre um justiceiro alienígena com poderes sobrenaturais, que andava por aí com uma identidade secreta durante o dia, mas utilizava seu codinome e agia uniformizado contra o mal, sempre que necessário. A ocasião da leitura fez-lhe lembrar, largando o gibi por uns momentos e olhando para cima, do vazio em que o apartamento se encontrava, sem família ou uma mobília decente, refletindo também o estado de sua alma naqueles tempos. Um espírito que andava em busca de vida, fantasia, sentidos, razões, romances e, principalmente, soluções para mistérios insolúveis...

Por exemplo, por que seu pai estava sendo acusado de um crime que, obviamente, não havia cometido? Aliás, que crime seria este? Nem ele sabia. Há poucos meses, militares certamente ligados ao DOI-CODI haviam tocado a campainha e, sutilmente, convidado o Sr. Teodoro, pai de Renato e professor de física na Universidade Federal do Paraná, a comparecer no batalhão para prestar certos esclarecimentos. Depois disto, no mesmo dia, Teodoro voltou do interrogatório muito machucado, abalado psicologicamente; não era de se estranhar. Arrumou uma ou duas malas e partiu para a antiga casa da família, em Quatro Barras, sem dar nenhuma resposta consistente, deixando o filho completamente sozinho.

Flores e FúriasOnde as histórias ganham vida. Descobre agora