Décimo primeiro capítulo: Confronto de gigantes

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O interior da casa de Felipe era amplo e requintado. Os ambientes possuíam um toque rústico, mas pareciam ter sido planejados com esmero, há muitos anos. Era tudo limpo e impecável. A sala, dividida em dois patamares, tinha o pé direito duplo e uma grande lareira aquecia o local, composto por poucos móveis. No patamar mais alto, uma comprida mesa de jantar. O que mais chamava a atenção era uma grande estante sob medida, que ocupava toda a parede, e tinha possivelmente milhares de livros. Havia uma seção especialmente dedicada aos russos: Tolstói, Dostoiévski, Tchekov, Gogol, Gorki, Turgueniev, Nabokov...

Por que os militares não faziam buscas e revistas aqui?, Renato pensou. Tinha certeza absoluta, agora, que Felipe era de fato a reencarnação do Conde Imortal que havia habitado o casarão de sua rua no passado. Vive eternamente, de corpo em corpo, transferindo sua mente para onde bem entende. Está em todo o tempo, em todo lugar. É eterno. É o um.

O grande traficante de delírios.

No que seria a sala de estar, dois sofás, uma mesinha de centro, além de uma bela televisão da marca Telefunken, colorida, de 21 polegadas, ornavam o recinto. A garota loira estava bem acordada, mesmo àquela hora da madrugada, tomando café e cobrindo-se com um grosso cobertor no sofá. Estava assistindo a TV. Essa gente não dormia?

...gricultores e cafeicultores relatam à reportagem muita preocupação com a previsão de geadas fortes no Paraná nos próximos dias, que prometem afetar até mesmo a região norte do estado. Os fazendeiros fazem o que podem para tentar salvar as plantaçõ...

...xador da Romênia deixou Curitiba por volta das 9 horas da noite, rumo a Brasília. Mircea Eliade assinou vários acordos de cooper...

Felipe deslizava por seu lar como se estivesse flutuando. Guardou seu capacete e perguntou a Renato:

O que achou?

Do quê? - disse Renato.

Da televisão. Compramos ano passado, para assistir a Copa.

Muito boa imagem - respondeu o jovem, constrangido, sem saber ainda como pensar ou agir.

Vem comigo - chamou Felipe. Vamos até meu escritório. Mas antes, me perdoe, aceita um café?

Sim - respondeu o jovem, desconfiado.

Felipe foi até a cozinha e voltou sorrindo, com duas canecas cheias de café preto e uma toalha, que entregou a Renato.

Você está úmido. Uma noite daquelas, não?

Felipe deu uma piscadela. Renato secou-se um pouco com a toalha e depois pegou seu café das mãos do anfitrião. Sorriu sem jeito, enquanto observava o cão deitando no tapete próximo à lareira.

Venha, entre, por favor - disse Felipe, apontando a porta de seu escritório.

***

Entrando no escritório, Felipe ligou um abajur e um aquecedor a gás. - Está com frio? - perguntou a Renato, que tremia, mas não respondeu. Após, colocou um vinil com composições elisabetanas de John Dowland para tocar em seu aparelho de som. Flow my Tears; faixa 1. Sentou-se na cadeira, atrás de sua mesa de trabalho. Ali dentro havia uma pequena estante, repleta de quadrinhos, especialmente do personagem Fantasmagórico, com sua máscara roxa e anel de caveira. Havia também uma máquina de escrever elétrica da marca IBM, modelo Selectric, cor cinza, sobre a mesa - onde também repousava um exemplar de Crime e Castigo. O professor da UFPR - que para Renato parecia muito com Loyd Law, o arquirrival do Ultra-Humano, portando uma espécie de tirania simpática - apontou a cadeira em frente à sua mesa, para o jovem sentar-se. Este recusou, preferindo sentar numa pequena poltrona junto à estante. Já tinha vivido essa cena de interrogatório nas ramificações curitibanas do DOI-CODI, e preferiu manter um pouco mais de distância desta vez.

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