Nono Capítulo : Suavidade implacável de Virgínia

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PARTE III

O perdão é a arma mais delicada

Se os teus olhos forem bons, todo o teu corpo terá luz; Se, porém, os teus olhos forem maus, o teu corpo será tenebroso. Se, portanto, a luz que em ti há são trevas, quão grandes serão tais trevas! Olhai para os lírios do campo, como eles crescem; não trabalham nem fiam; Não vos inquieteis, pois, pelo dia de amanhã, porque o dia de amanhã cuidará de si mesmo. Basta a cada dia o seu mal.
Mateus, 6.

Nono Capítulo

Suavidade implacável de Virgínia

Domingo, 13 de julho de 1975.

Fazia bastante frio no início da manhã e, como de costume, Renato havia dormido no sofá, segurando um gibi qualquer e pensando na própria vida, nos acontecimentos do dia anterior. Virgínia foi embora mais uma vez. E mais uma vez sentia-se abandonado à própria sorte, sem bússolas ou mapas, perdido no labirinto escuro e gelado das ruas de Curitiba. Não saiu de casa o sábado inteiro, e passou o resto do dia anterior assistindo à televisão. Lambendo suas feridas e tentando recuperar-se, de alguma forma, das surras psicológicas que o cotidiano lhe reservava.

Ao deitar, pensou: estou louco, vendo e ouvindo personagens dos quadrinhos, ou da literatura, em minha vida real... Ou Virgínia está louca, esquizofrênica, acreditando ser oriunda de outra dimensão, um universo ou um planeta distante, chamado Lowuream... Isto certamente era uma maluquice da sua cabeça. Estaria Virgínia sendo manipulada por Felipe Dignoli para, talvez... matar desafetos dele? É nisto que acredito, é a hipótese mais plausível. Inimigos políticos da universidade, quem sabe? Ou de fora dela? Sei que meu pai está escondido, e sei também que ele se envolveu com gente subversiva das Ciências Humanas. Ao menos, foi esta a informação que recebi. Fonte segura? Até onde ia o fio desse novelo?

Seria Felipe um agente comunista? Ou, ao contrário, um espião de Brasília infiltrado na UFPR? Virgínia de fato acreditava ser um anjo exterminador de outro mundo? Felipe a fazia acreditar nisso? Ou ela apenas contava essa história para me despistar e ganhar mais tempo? E a polícia, de que forma se encaixava nisso tudo? Estava sendo levada erroneamente a falsas conclusões sobre as mortes, sobre a explosão à bomba? Ou talvez as autoridades policiais estivessem intencionalmente plantando informações falsas para despistar a imprensa, para - na verdade - acobertar o envolvimento de militares importantes na morte de inimigos da ordem pública em Curitiba?

Meu Deus... E se Virgínia fosse uma dessas pessoas maníacas, obcecadas por literatura policial, notícias de crimes? Hercule Poirot, Sherlock Holmes, Sam Spade, Philip Marlowe... Jack, o Estripador... Quadrinhos de Detetive... Há loucos para tudo nesse mundo, incluindo os imitadores e falsários sob efeito copycat, absortos no insaciável desejo de copiar crimes macabros descritos em fontes culturais populares...

Renato acordou cedo, antes mesmo da aurora. Ficou alguns minutos olhando para as paredes, enquanto ainda estava deitado. Depois, sentou-se e alongou os braços e as costas. Bocejou. Com o cobertor por cima dos ombros, levantou e foi até o banheiro, onde lavou o rosto magro e cheio de machucados. Ficou fazendo caretas no espelho. Isto não é nada sério, pensou. Nada disto. É tudo uma brincadeira de mau gosto. A prisão de um sarcástico demiurgo. Uma armadilha feita para me iludir. Ainda saio daqui...

Secou o rosto, passou pela sala, foi para a cozinha e ligou o rádio. Ali abriu alguns armários e colocou água para ferver no fogão. Pegou um pote de café e o cheirou. O aroma o despertava com mais vigor, e lhe dava mais vitalidade para enfrentar o dia. Quando você não tem rotina, até os domingos tornam-se iguais às segundas. Tanto faz, na verdade. No dia seguinte provavelmente dormiria até 11h da manhã. Não sentia-se bem com isto, com esta desorganização cronológica... Mas que se dane! Não consigo controlar meu tempo, refletiu. Ao contrário, sou escravo dele. Servo de meus próprios desejos imediatos e incontroláveis. Um rato de laboratório, condenado a correr e a sofrer na gaiola, com dores intermináveis e um mal estar que nunca passa.

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