A Ferro Quente

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"A high scream comes from somewhere, like a horse in terror"

The Handmaid's Tale, Margaret Atwood




Em um canto do quarto um cavalo a encara. Um cavalo sem olhos. Um cavalo que ri. O cheiro dele se arrasta até as cobertas, roupas, pele, até os pulmões. É como se do mundo tivessem restado apenas cinzas.


Helena o escuta andar todas as noites. Da cama, ela consegue ouvir os choros e os arranhões. O Inferno.... o Mundo... a arder. Encolhe-se. Os sons de cascos não a deixam dormir. Pela sala, pelo corredor, ele vem calmo. Nenhuma porta é capaz de detê-lo.


E ele fica ali, bem ali naquele canto - com a forma corroída pelas sombras, poderia erguer-se até o teto, ocupar todo o ambiente, engolir a tudo, mas o cavalo permanece no mesmo lugar a encará-la... Aqui dentro, junto dele, o ar é pouco, quente, espesso.


Havia algumas roupas espalhadas. Uma mesinha com a TV. Um ventilador. Até mesmo a lâmpada do quarto. Tudo isso ela vendeu. O guarda-roupa será o próximo, peça por peça ela o deita. É preciso. Apenas quatro paredes brancas e a cama estreita. Um lençol? Um colchão? Logo a cama também se vai.


Pouco a pouco o quarto vai ficando mais vazio de coisas e mais preenchido por aquele cavalo. No escuro à luz de velas, Helena costuma olhar a insônia escorrer pelo teto e pingar em sua testa. Talvez haja uma infiltração...


O calor. A janela travada. O cheiro das cinzas. A cera a derreter. A porta trancada. A luz cortada. O suor. A mão. Mesmo de olhos fechados ela ainda podia sentir aquilo a vigiá-la. Desce uma mão pelo corpo. Não... O calor escalda sua pele. Gotículas de suor deslizam por suas coxas como seus dedos. Não...


Livr-rai-me... ela geme enquanto a ponta do anelar faz suaves círculos. Um calafrio galopa por sua pele, fazendo-a sentir cada dedo de suas mãos pelo corpo. NÃO! Senta. Os olhos arregalados. A culpa a apertar-lhe os ombros. Não...


Não nesta noite, ela diz para si. Passa a mão por debaixo da cama, agarra e puxa um chicote. Testa o couro, os pequenos detalhes em ferro. O primeiro golpe desce em suas costas como sangue. O cavalo dá um passo, parando o próximo no ar à espera. Mais um estalo. Ela aperta o grito na boca como a um arreio. Mais um passo. Não posso...


Da boca entreaberta do cavalo: fumaça. Ele treme. Suas orelhas haviam sido comidas por alguma chama, na verdade, do pescoço para cima não há mais pelos, a pele enegrecida. Rachada. Carvão. Mais um passo. Uma das patas traseiras se projeta para frente, por cima do corpo. Contorcia-se.


O chicote lambe o sangue das costas de Helena fazendo-o respingar pelo quarto. As chamas das velas bruxuleiam. Mais um passo. Toda a cabeça dele parece ter sido mergulhada em fogo. Até os dentes estão sujos em um sorriso de cinzas. Mais um passo.


As sombras fecham a visão de Helena, como mãos postas dos lados de seus olhos, como antolhos. Iria desmaiar. O ar lhe falta. As chamas das velas crescem. A cabeça leve. As sombras cercam mais seus olhos. O cavalo já está ao pé da cama.


Com a luz cortada, logo seria a água também, mas com a alma salva, era o que ela dizia. Venderia tudo se fosse preciso para comprar essa certeza. Amém. E logo não sobraria mais nada.


Aquieta o chicote sobre as pernas. Helena vira o rosto para o cavalo. Ela tenta puxar o ar, mas engasga com o vazio. O animal a encara sem olhos de volta. Por três infinitos segundos. Até que um espasmo percorre o corpo dele, e a cabeça cai. Cai como uma pedra que se larga das mãos. Perdão, perdão, perdão. Do pescoço não desce uma única gota. O sangue já estava coagulado há tempos.


Mal a cabeça toca os lençóis, Helena salta, se choca contra a parede, os olhos crescem sobre o resto do corpo do cavalo que permanece de pé. SAI! SAAAI!


Fogo irrompe do corte.


O cheiro de pelo e sangue queimado preenche o lugar.


As chamas altas raspam o céu da boca de Helena. Ela é inteira tragada.


A dor a escapar de suas unhas que arranham a parede.


Não há para onde ir.


As velas se apagam abafadas. Derretem.


O ar tremula quente.


As chamas dominam o quarto.


O cavalo se impõe e se ergue nas patas traseiras.


Devido o calor, a madeira da porta estala, quebra e se abre.


Livre!


Não consigo...


O medo a oprime contra a parede, e ela fica, como um cavalo marcado a ferro quente que volta de bom grado ao cercado.



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"Cai como uma pedra que se larga das mãos" - esta frase foi "inspirada" por um pequeno conto do Monteiro Lobato chamado "Juro!..." encontrado no livro "Literatura do Minarete", que é um causo sobre a Mula Sem Cabeça. No original - "Mas caiu mesmo, como cai uma pedra que se larga das mãos".




Carne Morta e Outros Contos Folklóricos de Dark FantasyOnde as histórias ganham vida. Descobre agora