Olhos Fátuos

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"guardavam, entranhado e luzindo, um rastilho da última luz que eles viram do último sol, antes da noite grande que caiu... E os olhos — tantos, tantos! — com um pingo de luz cada um, foram sendo devorados"

Contos gauchescos e Lendas do Sul - João Simões Lopes Neto



O céu estava carregado de nuvens. Para todos os lados tudo o que se via era água caindo. Os animais haviam abandonado suas tocas, ninhos e abrigos. Fugiam sem saber para onde, pois, aos poucos os rios se levantavam de seus leitos, e logo não existiria mais terra na qual se firmar.

A tempestade engolira o Dia, e a Noite Grande inundou o mundo.

Por entre as árvores, um grande roedor nadava puxado pela exaustão. Precisava seguir. Sobreviver. Para as montanhas! Mas, o nível da água estava subindo. Rápido todos terminariam afogados, mortos pelo cansaço.

Iria morrer ali? "Não", sussurrou-lhe a Esperança.

A Capivara era forte, assim como aquela chuva. Nadou. Nadou até seu corpo bater nas pedras. Subiu. Recuperou o fôlego. Havia conseguido. Só restava encontrar um local protegido do vento para esperar a tempestade ir embora.

O roedor encontrou uma caverna, e entrou. No fundo, ele se sentiu protegido.

Por dentro da montanha a Capivara andou por várias subidas, descidas e voltas até não conseguir escutar mais a chuva. Mas, algo a preocupava, havia um fedor no ar coagulado.

Havia algo escondido nas sombras. Um predador? "Não!", disse a Esperança.

A Capivara mal enxergava ali dentro, a fraca luz de seus olhos não era o bastante naquela treva. Deu mais alguns passos. Farejou. Talvez fosse algum animal ferido, que assim como ela fugia da enchente.

No entanto, um calafrio lhe estremeceu o maxilar, quando uma chama acendeu-se mais ao fundo. Era azul. Flutuava. E à luz daquele fogo uma carnificina se revelou. Vários corpos estavam espalhados pelo chão, havia sangue, pelos, ossos para fora. Bugios, onças, humanos, antas, caititus, não existia distinção. Todos recém mortos, alguns ainda a esfriar.

A labareda pairava no centro de tudo a uns dois palmos do chão. Era de um azul tão calmo...

As sombras foram se recolhendo à medida que o fogo se erguia. Lá no alto, dois olhos se abriram como dois pequenos sóis, e uma forma de serpente incendiou-se naquele fogo enroscando-se por entre os mortos.

O roedor correu.

Contudo, o vácuo deixado pelo corpo em fuga foi preenchido pelas chamas, que rápidas o alcançaram, o envolveram, apertaram.

A Capivara viu a luz de seus olhos ser sugada pela Cobra, ouviu os ossos estalarem, e sentiu a queda de volta ao chão frio junto aos outros.

Mbaetatá – a coisa de fogo –, uma vez alimentada, aninhou-se novamente e adormeceu no aguardo de a tempestade passar, pois com o pouco de luz que cada animal trazia consigo na esperança de se salvar iria sobreviver. Sobreviver à Noite Grande.

Ela acordava apenas para se alimentar dos que entrassem em sua caverna, até que não apareceu mais nada. Teriam os outros bichos morrido afogados? "Não!", disse a Esperança. 

Aguardou, sem se mexer, conservando as energias para quando o Dia retornasse a brilhar. Ela não saberia dizer se a chuva já tinha passado, porque o vento não se fazia ouvir ali embaixo, nem o barulho da água alcançava as profundezas onde se deitara. Então a Cobra continuava a dormir. Iria sobreviver, tinha certeza disso. Ela ainda veria a luz da Sol e tudo voltaria ao normal quando as águas abaixassem. "Não...", sussurrou-lhe a Esperança...


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No Rei de Amarelo (Robert W. Chambers), na parte dos contos mais "românticos", há um passagem com "'Não!', gritava a esperança". Qualquer coincidência não é mera semelhança aqui.   

Eu também reparei nessa minha fixação por olhos nestes três contos seguidos. Foi mal, gente. Não sei o que houve. Na própria vou tentar focar em algum lenda que não mencione olhos como a do Saci... (emoticon  pensativo) 

Caso tenha gostado deixa sua estrela, isso pode não parecer, mas ajuda bastante. E qualquer coisa é só jogar um comentário, responderei a todos. Obrigado pela leitura!     


Carne Morta e Outros Contos Folklóricos de Dark FantasyOnde as histórias ganham vida. Descobre agora