Entre a Canoa e o Osso (parte 2 de 2)

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"O amor roeu minha infância (...)

Comeu meu silêncio, minha dor de cabeça, meu medo da morte."

Os Três Mal-Amados – João Cabral de Melo Neto


Capítulo 3 - Pós-pai

O corpo não foi encontrado apenas a canoa, esta era a confirmação. O pai estava morto. E mortos de fome iriam ficar se mãe e filho não seguissem com os dias.

Uma noite após a outra, o rapaz tentava, teimoso, pescar, mas não possuía a destreza do pai. E a Fome não se condoia por nada.

Eram tudo um para o outro, tudo o que restou, mãe e filho. Eles se aproximaram como nunca antes, nem mesmo dentro do ventre ele se sentiu tão próximo. Assim o amor se misturou ainda mais ao desejo como um rio cheio. Enchendo, alagando, escorrendo.

Antes de sair, o filho parava à porta, escorado na parede a encarar o que vinha à frente. Seja o que fosse ele sabia que precisava ir encontrá-lo. Encontrá-la? Virava-se para o interior da casa. "Bença". Os lábios na pele. Descia. Descia para o rio.

Carmen o esperava na metade do caminho para seguirem juntos. Ela reparou que o rapaz estava mais magro, cansado, com olheiras e bochechas fundas. Ele tinha fome, mas não tinha vontade de comer. Já não dormia porque passava as poucas horas que a noite lhe ofertava como descanso de olhos grelados. Imaginando... Imaginando...

Os lábios se mexendo a cada palavra, as marcas de expressão ao redor dos olhos e da boca, os dentes pequeninos, Carmen tinha o sorriso da mãe dele mesmo quando estava a brigar a alegria era presente em cada traço do rosto. O rapaz se perdia naquelas semelhanças. "Muito magro!", Carmen soltava simulando raiva num riso tímido, que o trazia de volta dos pensamentos.

À beira do rio, Carmen subia nos galhos das árvores submersas. Ficava ali, balançando os pés a centímetros da água, jogando papo fora enquanto o rapaz se preparava para a pescaria do dia. Carmen era tão leve que a madeira não rangia, nenhuma folha caía, nem a água se abalava com sua presença, era como se ela não existisse ou como se ela fizesse parte daquele cenário, daquelas madrugadas, de toda a natureza.

Ele partia na canoa, e quando se via cercado apenas pelas águas, sem ninguém para incomodá-lo, se deitava, encostava o ouvido no fundo para sentir a correnteza passar tranquila do outro lado da madeira. A respiração ia aos poucos se igualando ao movimento do barco, subindo e descendo.

Sem barulho, sem agitar a água, Carmen nadava ao redor da canoa. O rapaz jamais soube que era vigiado de tão perto nesses momentos de olhos fechados. Com a mão dentro da calça ele sussurrava... Além do fundo da canoa mais nada existia.         

         

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