Se Essa Rua

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Roger corria pela rua. Chinelos nos pés, lágrimas no rosto.

Alguns vizinhos vinham às janelas, às brechas dos portões, aos olhos mágicos, para acudir a própria curiosidade. Eles haviam ouvido a briga, a voz alterada da mãe, as pancadas que o pai dava sobre a mesa.

O rapaz tentava ignorar os risinhos mal contidos, os cochichos, as olhadelas presas em seu caminho. "E nos momentos de angústia consolai-me". A oração repetia-se em sua mente como os passos nos ladrilhos da rua. "Ignore, ignore".

A garoa que caíra instantes antes ainda deixava suas marcas no chão, sob o sol a água entre as pedras se assemelhava a pequenas lágrimas, ao orvalho em uma manhã longínqua, a pedrinhas de brilhantes.

"Sob as asas do seu amor, possa meus sonhos habitar!" Em cidade pequena os fuxicos correm com as pernas de todos, enquanto ele só contava com as próprias.

A sequência de paralelepípedos, de formas iguais sob os pés de Roger acabava mais à frente, e para mais além do fim da rua começava o bosque. Antes de se aproximar mais ele tirou os chinelos, porque sabia que o solo onde pisava era terra santa, porque sabia que chamavam aquele lugar de Solidão...

Correu descalço. A sombra que as árvores faziam era doce sobre a pele. Roger respirava fundo de peito aberto. "Santo Anjo da Guarda, meu poderoso protetor, guardai-me sempre na paz de vosso amor".

Mais dentro do bosque havia uma grande pedra, e sobre ela um anjo dormia. As asas esparramavam-se de um lado e do outro. Os cabelos curtos e loiros reluziam na penumbra. Ele moveu-se pressentindo o rapaz.

Roger caminhou até o outro, envolveu as mãos dele entre as suas e em um abraço se perdeu em meio ao perfume e à calidez serena do anjo. Aqueles os olhos perolados eram um jardim no meio do deserto. Em sonhos o anjo o visitava, o chamava, o amava. Tão próximo de si enfim o beijou. Sentiu o afago de dedos entre seus cabelos e o sabor dos lábios do outro, como se emanassem leite e mel.

O anjo transpassou o peito do rapaz com a mão. Os dedos afundaram na carne, quebraram a caixa torácica, apertaram o coração ainda vivo do humano. Com um puxão tudo se esfriou e o que se soprou aos ouvidos de Roger foram os versos de uma canção perdida na poeira da infância.

"Nessa rua tem um bosque, que se chama... que se chama Solidão. Dentro dele... dentro dele mora um anjo, que roubou... que roubou meu coração."

(423 palavras)


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A imagem no final foi feita a partir de uma escultura do Aleijadinho, sobre a qual joguei um filtro. Gostei do resultado e vou repetir tanto nas próximas quanto nas ilustrações (mal feitas por mim) já publicadas em capítulos anteriores - no Zoo, Às Costas Cruas e no Uma Gota de Veneno etc .

Só para vocês não saírem do clima:   

Voltei! (ou não)

Essa sumida de uns quatro meses se deu dentre outras coisas devido a um bloqueio criativo em alguns contos e à revisão complicada de um que havia escrito em 2012. 

Se meus planos se concretizarem, na próxima segunda-feira terá mais contos. Enviei para duas amigas fazerem uma leitura beta e de sensibilidade. 



Carne Morta e Outros Contos Folklóricos de Dark FantasyOnde as histórias ganham vida. Descobre agora