7. Você deve morrer para fazer história

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Sylvia Plath estava completamente infeliz. Tinha só 30 anos quando morreu, e deixou tantas obras que entrou para a história. Meu irmão não deixou nada relevante para a Literatura ou a Ciência, mas deixou com a gente o peso do que ele fez. Assim como Sylvia Plath deixou seu peso com os filhos pequenos que acabaram não tendo uma mãe. Não sei como deve ser saber que um de seus pais se matou.

Volta e meia, tento imaginar como era o mundo para o Théo, mas não tiro conclusão alguma. Talvez ele visse a vida como eu estou vendo agora. Através de lentes que estão sempre embaçadas. Acho que a vida nunca foi muito nítida para nós dois.

Às vezes, algumas lembranças chegam para mim, assim, de repente, como se estivessem perdidas e só agora encontrado seu caminho. Mas a maior parte das memórias que eu tinha eram de bons momentos, nos quais ele parecia feliz.

Eu já estava meio encostado na cama há um bom tempo, perdido em pensamentos que me levavam de volta para Théo. Mas Flora ainda estava ali, sentada naquela mesma cama, acariciando meu cachorro. Era uma grande desconhecida, aquela garota. Eu não costumava receber pessoas desconhecidas no meu quarto, me deixava desconfortável. Ajeitei o corpo contra a cabeceira da cama e suspirei profundamente. Minha vida nunca mais voltaria ao normal. Se é que ela já foi normal um dia.

— E aí? — perguntei. — Está pensando em se mudar pra cá? — disse quebrando o silêncio. Flora não parecia nada desconfortável.

— Apesar de aqui ser muito melhor que morar em república, e ainda ter um cachorro e comida decente, não. Não vou me mudar.

— Então o que está tentando fazer?

Ela se remexeu no colchão e trouxe PJ mais para perto. Não respondeu, apenas olhou para as estantes na parede e para mim. Depois, finalmente voltou a falar enquanto admirava meu cachorro.

— Estou tentando amaciar essa sua cabeça dura.

Dei de ombros de novo. Não queria discutir. Achei que ela estava passando dos limites, estando ali até agora. Não era algo muito razoável, era? E eu gostava de coisas razoáveis...

Mas, ao mesmo tempo, era bom falar com alguém da minha idade. Nem me lembrava da última vez em que isso aconteceu.

— Então, Max — ela recomeçou, se aproximando e me rodeando como uma daquelas hienas em O Rei Leão. — Conversei com os caras do DA, eles tem esperança de que eu consiga convencer você, mas não se preocupe, sua fama de mala já foi conquistada. Achievement unlocked — disse olhando para o meu Xbox.

— Hum. Será eles já podem devolver meu caderno? — perguntei, mais para mim mesmo do que para ela.

— Qual é a do caderno, afinal? — quis saber, finalmente parando de andar em volta de mim como predadores fazem.

— Qual é a do livro, afinal? — repliquei.

— É O Mágico de Oz — ela suspirou e levantou uma sobrancelha.

Levantei e fui até a estante. Passei os olhos pelos livros e retirei minha versão de capa dura de O Mágico de Oz.

— Pronto — disse entregando o livro a ela. — Agora você tem um novo.

— Não seja idiota — ela respondeu. — Não é qualquer livro. Meu pai me deu o livro, tem coisas escritas nele — sua voz se alterou. — Coisas pessoais — completou num murmúrio. — Coisas importantes. Acha que eu me importaria se fosse um livro qualquer?

— Que tipo de pessoa escreve em livros!? — eu disse de repente. Ela voltou a me encarar e dispensou a pergunta.

— E o seu caderno especial? — ela perguntou.

Fiquei imóvel. Théo tinha aquele caderno já há alguns anos. Ele nunca havia me deixado folheá-lo, acho que era por isso que eu não o tinha aberto quando ainda estava comigo. Era uma questão moral, na verdade. Não era certo ler o caderno se ele nunca tinha me deixado fazer isso.

— Ele é do meu irmão — respondi.

— E onde ele tá?

Respirei fundo.

Não respondi.

Flora ficou parada por um tempo, pensativa. Enquanto ela pensava, eu ponderava sobre como não tinha o menor jeito com garotas. Tenho certeza que a essa altura meu irmão já teria resolvido a situação, e Flora já teria ido embora, provavelmente satisfeita e convencida.

Théo era excelente em convencer as pessoas a fazerem o que ele queria. Sei disso porque era o que ele fazia comigo. "Vamos aprender a andar de moto, Max", e eu ia, mesmo que eu nunca tivesse montado em uma moto antes, mesmo que eu não tivesse um capacete e mesmo que estivesse chovendo. "Vamos a uma festa às 3h da manhã de uma quinta-feira, Max", e eu ia mesmo que tivesse prova de química no dia seguinte. "Vamos matar aula, Max", e eu ia, mesmo sabendo que iríamos ser pegos. Era um talento pessoal. Ele teria sido um bom vendedor ou homem de negócios. Ou um bom político, dependendo de como você pensa a situação. E ele era ótimo com garotas, muito diferente de mim.

Flora continuava quieta, e eu já estava começando a pensar que ela realmente iria passar a noite ali. Estava começando a me acostumar com o perfume cítrico que tinha tomado o meu quarto, como se com ela ali o ar ficasse um pouco menos pesado e fosse mais fácil respirar. Acho que, em algum lugar dentro de mim, Flora passar a noite falando sem parar na minha cabeça nem fosse má ideia.


Antes que eu te deixe ir #wattys2018Winner!Onde as histórias ganham vida. Descobre agora