QUATRO - Parte 1

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Eu não entendo como Meje está tão calmo - quase passivo. Ele nunca foi assim, o tempo todo em que convivemos. Ele sempre era o primeiro a querer discutir, analisar todos os pontos e possibilidades e tentar entender exatamente o que eu estava pensando. Não que eu esteja fazendo alguma questão de disfarçar isso. Pelo menos, não quando o assunto é essa questão dos véus.

Cruzo os braços e encaro a mata através do "vidro" da sala nos fundos da minha casa. Demorei meses para entender o que isso era e como deixar as paredes assim, transparentes, mas até hoje não descobri como foi feito. Já estava aqui quando cheguei. E a mata...

Estico o braço. Um diabrete pula de uma das plantas dependuradas na parede para a minha mão e sobe para o meu ombro.

Olhando daqui, não parece que tem nada de diferente. E isso é interessante, também. Nenhuma das áreas de deserto é fácil de ser notada de longe. No máximo, parecem uma clareira, até que a pessoa chegue lá. Logo que elas começaram a aparecer, Alessio me avisou e levantei proteções ao redor de todas que encontramos, então ninguém chegou a entrar nelas sem querer. Ninguém a não ser Alessio, quando estava enfrentando os pesquisadores, e... Isso é outra complicação. A questão é que não sabemos o que poderia ter acontecido se alguém entrasse ali por acidente. E, considerando o que Meje falou sobre caçadores do outro lado...

O diabrete puxa o meu cabelo e aponta para a porta que dá para o quintal.

Droga. Faz quanto tempo que não acendo o forno? Acho que já está quase completando uma semana, porque eu estava preocupada demais com a possibilidade de ir atrás de Meje...

Suspiro e abro a porta. É tudo tão normal - o vento, aquele cheiro da mata se misturando com um pouco de maresia. E tudo pode mudar a qualquer minuto.

Pego um dos sacos de carvão encostados na parede e o arrasto para perto do forno de tijolo. Os outros diabretes saem depressa, pulando ao meu redor, em cima do saco de carvão e em cima do forno. Definitivamente perdi a noção do tempo e demorei demais, se eles já estão assim.

— Vocês deviam ter me lembrado.

O diabrete que está no meu ombro puxa meu cabelo com mais força. Certo. Eles provavelmente tentaram me lembrar e eu não dei atenção porque estava preocupada demais.

Jogo uma boa parte do carvão dentro da abertura do forno.

Eu sabia que pedir ajuda de Meje não era uma boa ideia. Sabia, desde o começo, tanto que falei para Marrein que não ia fazer isso. Mas eu não tinha outra opção e continuo não tendo. Tentei fazer isso sozinha e passei dois meses sem sair do lugar. Então...

Ele se lembrou que eu gosto de chá e que erva-cidreira é bom para acalmar. Sete anos sem o menor contato, e ele não se esqueceu. Merda.

Ia ser mais fácil se esse tempo tivesse servido para alguma coisa. Por exemplo, para acabar com essa sensação de familiariedade, mesmo que eu não tenha mais tanta certeza sobre ele quanto tinha antes. Não importa o que é diferente, porque o que é parecido ou igual continua ali e... É confortável demais.

Estico o braço e acendo o fogo com um pensamento. As chamas são escuras demais, de um tom quase vinho antes de se tornarem amarelas na ponta - estranhas e erradas, nesse mundo. Mas não para o mundo de onde os diabretes vêm. Eles pulam para dentro do forno e para o meio do fogo na mesma hora, fazendo aqueles ruídos agudos e roucos que querem dizer que estão satisfeitos.

Quem dera se tudo na minha vida fosse fácil assim de resolver.

Ter Meje aqui, assim, é confortável demais. A forma como ele não me questionou hora nenhuma depois que entramos em casa, nem quando eu praticamente coloquei ele para fora, quando estava cuidando de Marrein... Isso é novo. E só serve para me fazer pensar no e se. E se as coisas tiverem mudado? E se talvez valer a pena tentar achar um pouco daquilo que a gente tinha antes e ver no que dá?

Eu não tinha nem que estar pensando em nada disso, mas não consigo evitar. Deveria estar preocupada só com a possibilidade de sermos atacados, porque isso vai acontecer e eu estou esgotada. Essa deveria ser a única coisa na minha cabeça agora, não...

Não o tipo de coisa que eu pensava quando ainda era uma adolescente. Isso deveria ter ficado para trás, também.

— Rafaela?

Solto o ar devagar e me viro. Meje está parado na porta dos fundos, olhando para mim. Faz quanto tempo que ele está aqui? Não faço ideia e isso também não é bom. Eu deveria saber. Deveria ter notado.

— Você precisa descansar — ele fala.

Reviro os olhos. Me conte alguma coisa que não sei.

— Vou aguentar até nos atacarem ou até Marrein acordar.

E ficar parada em pé aqui fora não vai ajudar em nada nesse sentido, também.

Olho para os diabretes de novo, pulando entre as chamas e o carvão. Não tem perigo eles ficarem aqui. Consigo sentir alguém se aproximando da casa muito antes de chegarem nas minhas defesas reais e eles podem se defender muito bem, além de que não precisam de uma porta aberta para voltar para dentro de casa.

Eu queria metade da tranquilidade deles.

Meje dá um passo para o lado quando vou na direção da porta. Entro sem falar nada e tento ignorar o ruído dos passos dele vindo atrás de mim. Não quero conversar agora, não importa o que seja.

— Rafaela...

Balanço a cabeça, sem olhar para trás.

— Agora não.

Ele segura meu pulso.

Me viro para trás de uma vez, já reunindo poder, e Meje me solta na mesma hora.

Minha visão começa a escurecer e respiro fundo. Merda. Eu não devia ter feito isso. Poder demais - o que precisei antes, cuidando de Marrein, e mais isso agora, reunindo tudo assim...

— Vai descansar, Rafaela — Meje fala. — Você sabe o que eu sou. Sabe que eu sou mais que o suficiente para conter um ataque não planejado.

Levanto as sobrancelhas. E pensar que diziam que eu sou arrogante.

— E se não for? E se já estiverem contando com você aqui?

— Nesse caso, vou te chamar. Mas apenas se for necessário. É melhor você descansar agora e estar preparada para depois, porque vão voltar, e vão estar mais preparados.

Sem hesitação, sem parar para pensar. Só uma resposta rápida. Merda.

Ele não está errado. Essa é a pior parte. Eu preciso estar pronta para o que vai vir depois e, considerando que já estou no meu limite agora...

— As minhas defesas... — começo.

Meje balança a cabeça.

— Você abriu a ligação. Eu consigo sentir suas defesas. Vai descansar.

Respiro fundo e solto o ar devagar. Queria discutir, mas seria por puro orgulho e não ia dar em nada, porque ele está certo.

— Me avise se acontecer alguma coisa.

Viro as costas e continuo a andar na direção da sala. Se Marrein está na minha cama, só sobrou o sofá.

Não posso correr o risco de me acostumar de novo, de voltar para aquela zona de conforto que Meje sempre foi. Eu não tenho mais dezoito anos.

E preciso dar um jeito de tirar tudo isso da cabeça e prestar atenção no motivo para eu estar precisando lidar com Meje aqui.

Me deito no sofá, dobrando as pernas e tentando achar uma posição confortável. Só um cochilo. Vinte minutos, meia hora no máximo, e vai ser o suficiente.

Fogo e Névoa (Entre os Véus 3) - DEGUSTAÇÃOOnde as histórias ganham vida. Descobre agora