CAPÍTULO 12

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*** esse capítulo contém gatilhos que podem gerar desconforto a pessoas sensíveis, leiam com cuidado ***

*** capítulo sem correção ortográfica ***

Cindy

Uma maçã podre é capaz de estragar uma cesta inteira.
Era isso que minha avó dizia sempre que se referia as mulheres que seduziam meu avô, claro que ela nunca se afastou do cesto por tempo suficiente para se dar conta de que a maçã que estragava tudo a sua volta era na verdade ele.
Mesmo assim aprendi uma lição enquanto ouvia os murmúrios de uma mulher cega pela traição do homem que aprendeu a amar por toda a sua vida, uma pessoa quebrada é capaz de destruir tudo a sua volta.
Hoje eu sou essa pessoa, sou a maçã, e dia após dia venho causando estragos em tudo que toco. Foi assim com Nuno, antes de Stella chegar e salva-lo de mim. É assim com todos. Mas eu não queria que fosse com ele. Já destruí nossa amizade, nossa relação, as coisas que vivemos juntos, nossas memórias, mas hoje sinto que chegamos ao fundo do poço.
Hoje eu quase o perdi.
Ele não, Deus, por favor ele não.
Tudo aconteceu rápido demais, em um instante estávamos lá, fazendo o que sabemos fazer de melhor, nos machucando, na nossa brincadeira doentia, sem pensar muito no que estávamos fazendo, uma espécie de roleta russa emocional onde ganha quem suporta mais tempo sem enlouquecer. E então a confusão começou, vi o instante em que seus cabelos loiros desapareceram sob a água, levando consigo o ar dos meus pulmões, e logo em seguida alguém pulou dentro da piscina, no exato lugar onde ele estava.
O grito que saiu da minha garganta seria capaz de acordar os mortos do outro lado do mundo, tudo parou enquanto eu tentava correr até ele, o tempo parecia ter sido pausado, em uma tortura agoniante, fiquei esperando que ele emergisse xingando, com sua carranca de sempre, mas ele não aparecia e meu coração frágil e dolorido se apavorou.
Nunca senti tanto medo em toda a minha medíocre vida.
No instante em que seu corpo indefeso foi colocado no chão, imóvel, sem vida, os lábios arroxeados, os cabelos espalhados, seus olhos, tão lindos e doces, meu pedacinho particular do céu, fechados, a cabeça se movendo com a força com que o rapaz tentava salvar sua vida, senti como se a minha existência estivesse em perigo. Me ajoelhei ao seu lado, meus dedos trêmulos acariciando seus cabelos enquanto eu sussurrava baixinho.
— Baby não... por favor não me deixa aqui sozinha, baby por favor.
Me inclinei ainda mais, meus lábios quase tocando seu ouvido, chamando-o pelo nosso apelido, implorando para onde quer que ele estivesse, pudesse me ouvir, lembrar que um dia fomos felizes e voltar para mim, porque de jeito nenhum eu deixaria que ele morresse de forma tão idiota.
— Baby sou eu, volta pra mim, por favor me perdoa.
O rapaz ainda estava lá, usando toda a sua força, seu rosto estava vermelho e ele parecia apavorado, mas ele não parou nem um minuto. E nem eu me afastei.
— Baby...
Se ele morresse...
Não, não, não.
Tentei evitar pensar sobre isso enquanto observava angustiada os braços fortes do rapaz sobre seu peito, será que ele estava machucando-o com toda aquela força? Será que demoraram demais para tira-lo da água? Foi minha culpa?
Minhas lágrimas cederam no instante em que ele começou a tossir, me afastei e senti um par de braços me afastarem.
— Ele precisa de espaço. — um rapaz disse em meus ouvidos enquanto me levava para longe dele. Queria grita, tirar suas mãos de perto de mim, me jogar de volta ao seu lado, ele estava sufocando, e se ele não conseguisse?
Mais uma eternidade se passou enquanto Ivan lutava para respirar, seu rosto em um tom desesperador de roxo, sufocado com água enquanto ele tossia e jogava fora aquilo que quase o levou. E no instante em que ele finalmente respirou, senti o peso do medo me dominar de uma forma aterrorizante e então apaguei.
E agora estou aqui, olhando seu corpo acomodado na cama, a luz suave do abajur iluminando os machucados em sua pele pálida, o centro do seu peito em um tom forte de rosa onde foi manipulado, o hematoma em seu rosto crescendo a medida que ele dorme tranquilamente e tudo que consigo pensar foram nas últimas palavras que disse para ele naquele corredor frio.
“Se depender de mim pode até morrer que não farei nada para impedir.”
Me aproximo e sento ao seu lado, passo a ponta dos meus dedos sobre seus lábios, queria saber rezar para poder agradecer a Deus por sua vida, queria poder dizer o quanto me arrependo das minhas palavras, o quanto tive medo, queria pedir perdão por tudo, mas apenas fico aqui, ao seu lado, velando seu sono, admirando seu rosto perfeito maculado pelos chutes que levou, observando uma ruguinha entre seus olhos e imaginando se ele está com dor, ergo meus dedos e acaricio-a até que seu rosto relaxa e ele suspira.
— Há quanto tempo você não dorme baby? — sussurro só para mim enquanto continuo acariciando seu rosto. — Quanto tempo você vai aguentar assim? — passo meus dedos por seus cabelos, as mechas macias quase secas, se desmanchando com o contato.
Me inclino só um pouquinho e faço algo que não deveria, que prometi para mim que nunca cederia, mas eu quase o perdi e a ideia de nunca mais poder fazer isso me consome de um jeito doloroso e então eu ignoro todas as minhas regras sobre ele e o beijo. Um beijo casto, leve, rápido, só o toque dos meus lábios nos seus, um pedido silencioso de desculpa por não poder ser a garota que ele merece que eu seja, por não conseguir demonstrar o quanto ele é importante para mim.
Eu o beijo como se pudesse deixar um pouco de vida em seus pulmões, como nos contos de fadas, em que um toque é capaz de mudar vidas. Fecho meus olhos e passo o nariz em seu rosto, sinto o cheiro de cloro, do seu perfume, de sexo e meu peito dói.  De ciúmes, de saudade e de algo que não consigo sequer admitir, porque não mereço sentir.  Não sou digna dele, não mais.
Estou tão concentrada nele que não noto quando a porta se abre até que sinto uma mão em meu ombro e me ergo assustada.
— Ei, desculpa, não queria te assustar. — Nuno diz enquanto olha para mim provavelmente surpreso por me ver aqui com ele. — Pelo amor de Deus, eu vim o mais rápido que pude, o que houve com ele? — Nuno olha para Ivan, seu próprio rosto perdendo a cor a medida que se dá conta do que aconteceu.
— Ele...  — tento falar, mas as palavras parecem enroscar em minha língua. — Ele caiu e se afogou, mas agora está tudo bem. Ele está só dormindo, você sabe, ele precisa descansar, ele nunca descansa. — digo enquanto encaro seu rosto tranquilo,  para Nuno, mas também para mim mesma.
— Jesus Cristo! — Nuno sussurra, a voz trêmula, assustada.
Levanto-me e caminho com Nuno até o corredor porque sei que ele precisa respirar um pouco, Nuno não sabe lidar com esse tipo de situação, quando saímos do quarto Nuno envolve os braços em torno do corpo enquanto caminha de um lado para o outro e me ouve atentamente contar toda a história.
— Deus do céu, ele poderia... — Nuno se ajoelha, como se não pudesse mais suportar ficar de pé diante dessa realidade. — Se não tivessem sido rápidos ele...
— Shhh, não pensa nisso. — me ajoelho a sua frente e seguro seu rosto em minhas mãos. — Ele está bem e isso é tudo o que importa. — digo encarando seus olhos apavorados e sentindo meu coração disparado no peito.
— Ele precisa ir para o hospital.
— Um médico já veio vê-lo, ele está bem.
— Tem certeza? Porque ele não parece nada bem. — Nuno aponta para a porta.
— Sim, ele só está cansado.
Nuno respira fundo e quando solta o ar, parece algo doloroso, ele se senta no chão apoiando as costas na parede e desvia o olhar quando uma lágrima escapa dos seus olhos.
— Esse idiota, o que ele tinha na cabeça para fazer aquilo?
— Estamos em uma festa Nuno, já esqueceu como são as festas de Monte Mancante?
— Ele estava sozinho, se eu estivesse aqui isso não teria acontecido.
— Ei, não faz isso, não coloca a culpa em você, foi um acidente, poderia ter acontecido com qualquer um que tivesse ali, as pessoas começaram a se jogar como se estivessem em chama, foi tudo muito rápido.
— Merda! — ele esfrega o rosto furioso. — Ivan seu idiota.
Nuno ergue os olhos e me observa, como se só então tivesse se dado conta de que estou aqui.
— Como você está?  — ele segura meu rosto, os polegares acariciando minhas bochechas. — Droga Cindy, você está pálida, está sentindo alguma coisa?
— Eu estou bem, tá tudo bem.
Mas ele não parece acreditar, principalmente quando se dá conta de que há um curativo em meu antebraço.
— O que foi isso?
— Eu desmaie quando vi Ivan naquele estado, o médico achou que seria prudente me deixar um pouco hidratada, foi só isso, um pouco de soro.
— Que loucura! Eu e Stella estávamos em casa assistindo um daqueles filmes chatos que ela ama, enquanto meus amigos estavam correndo perigo, eu nem ao menos podia imaginar que algo assim estava acontecendo.
— Ei, quer parar com isso? Você merece ser feliz, a professorinha também, não se sinta culpado por nada, isso é cruel com vocês.
Nuno não diz mais nada, ao invés disso ele me puxa para um abraço que me sufoca e me preenche de um alivio que enche meus olhos de lágrimas.
— Nunca mais faça isso, nunca mais, por favor. — ele sussurra em meu ouvido enquanto segura minha cabeça em seu peito.
— Me desculpa. — sussurro fechando os olhos e sentindo o amor que carrego no peito por esse garoto encher meus olhos de lágrimas outra vez. Peço desculpas por tudo o que fiz, por colocá-lo contra seu melhor amigo, por usá-lo quando era insuportável olhar para o Ivan, como se ele fosse o meu escudo contra a dor que eu sentia.
Que ainda sinto.
Afasto-me bruscamente, empurrando-o e me levantando.
— Preciso ir.
— Espera, mas e o Ivan? — ele também se levanta.
— Agora você está aqui, ele vai ficar bem.
— Não faz isso Cindy, ele vai precisar de você quando acordar.
— Não Nuno, ele não precisa de mim, isso tudo só aconteceu por minha causa, ele precisa de você. — aperto seu braço em um carinho desajeitado.
— Porque você dificulta tudo? Que merda Cindy, não faz isso, ele não merece isso.
— Eu sei, ele não merece, por isso eu estou indo. — dou mais um passo e limpo meus olhos com as costas das mãos. — Cuida dele para mim, por favor.
— Vocês são dois idiotas.
— E não somos todos? É por isso que somos amigos. — dou uma piscadinha enquanto me afasto, caminhando para longe dos dois garotos mais importantes da minha vida. — Me manda uma mensagem quando ele acordar tá?
— Beleza.
Jogo um beijo para ele e me viro descendo as escadas o mais rápido que posso, ignorando a tontura que ameaça me fazer tropeçar, desvio das pessoas, ignoro as perguntas, passo pela porta, agradecendo por meu carro estar a uma quadra de distância, preciso andar, o mais rápido possível.
Aumento o passo até que estou correndo, viro a esquina no instante em que as lágrimas começam a escorrer por meu rosto, flashes dos momentos mais assustadores pipocam em minha mente, Ivan desmaiando, seu peito vermelho sendo pressionado, seus lábios roxos, a água escapando de sua boca.
Corro o mais rápido que minhas pernas aguentam, passo por mais uma quadra ignorando o carro que ficou para trás, corro até sentir minhas pernas queimando, meu coração acelerado, meus olhos ardendo. Quando chego em casa estou tremendo, as pernas mal suportam meu peso, abro a porta com tanta força que ela bate na parede, corro até a cozinha agradecendo por estar sozinha, o silencio e a noite são minhas únicas testemunhas, são sempre eles que presenciam quando isso acontece, os únicos em quem posso confiar meu segredo.
Começo a gritar, um grito abafado em meu braço, grito até minha garganta arder, até meus dentes deixarem uma marca horrível em minha pele, até a dor me acalmar. E então tudo que sobre é um vazio insuportável.
Abro a geladeira e pego o pote com a lasanha que comprei hoje a tarde, puxo a gaveta e pego um garfo, não me preocupo em esquentar, desabo no chão exausta demais para chegar a mesa e começo a comer, o ar frio fazendo o suor parecer gelo em minhas costas enquanto engasgo com os pedaços que mal mastigo antes de engolir, como enquanto choro, desejando apagar o dia de hoje da minha mente, quando a lasanha acaba pego outro pote, uma salada de batata com pernil, não sei quem trouxe, provavelmente Denise, a solitária governanta da mansão onde vivo, não ligo, como tudo gemendo enquanto sinto o sabor picante do seu tempero em minha boca, estou faminta e desesperada, então continuo comendo, sem me importar com nada, uma travessa de pudim de leite, uma garrafa de iorgute natural, fatias de queijo brier e peito de peru defumado, suco de laranja, um punhado de uvas passadas, patê de ricota com atum, e entre garfadas e lembranças que se aprofundam cada vez mais, me torturo enquanto penso no que seria de mim se ele não tivesse acordado.
“ Se depender de mim, pode até morrer que não farei nada para impedir...”
Eu continuo comendo, como se a comida pudesse me salvar de mim mesma.

Como até que meu corpo não suporta mais, até que meu estomago doa e então começo a vomitar, jatos repugnantes de humilhação, vergonha e tristeza deixam meu corpo, provando que nada de bom pode ficar muito tempo dentro de mim, sou apenas uma carcaça podre, vazia, perdida e triste, que teve a infelicidade de se apaixonar por um pedaço do céu.
Deito no chão apoiando minha bochecha no piso frio e brilhante, envolvida em minha própria sujeira, enquanto vejo seus olhos azuis assustados me encarando e me obrigo a lembrar do que minha vó dizia.
A única forma de proteger uma cesta é retirando a maçã podre.

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Ah minha pobre menina rica...
Eu amo tanto essa garota, tanto que meu coração dói de ler esse capítulo.
Um dos mais dolorosos é difíceis de escrever e quem me acompanha nos grupos de leitores, já me viu falar que escrever Ivan foi tão doloroso quanto escrever Thales ou Ezra
A resposta está aqui.
Recebam minha maçã podre, minha vadia suja, minha garota indigna e mostrem a ela que ela não é nada disso.
Cuidado, embaixo de muitos sorriso, pode haver uma garota assim.

Até amanhã

IVAN (capa provisória)Where stories live. Discover now